OITO POEMAS DE JUSSARA SALAZAR | PROJETO 8M
8M (*)
Mulheres não apenas em março.
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
'Dias mulheres virão',
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)
Navegue na profundidade poética de JUSSARA SALAZAR:
POEMA PARA UMA MENINA ANTIGA
recolhe a chuva para
que não fuja
com o tempo
amansa a chuva
para que não chore
sobre o mundo
enchente
desmanche a pedra
inunde a mata
mergulhe até o fundo
por isso abraça a chuva
para que o instante
surja
e cada grão da terra
sem nenhuma guerra
seja flor e ouro
poro água corpo
(* poema extraído do site escritorassuicidas.com.br, edição 39, março/2010)
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VÉRTIGO
Isto é um teatro
isto é um vale de lírios
de lírios de plástico isto
é um vale de lírios eu acho
que isto não é real, mas o que é isto?
isto não é um teatro
e todos correm
todos brincam
porque isto não é a hóstia
do senhor consagrado
isto é um pacto ou
o vácuo do trem que se aproxima
é o terceiro ato
e ninguém mergulhou na piscina
ninguém atravessou o pátio
isto é alimento mas
está fora do prazo
é ainda um lugar vago
porquê isto é lamento
é um vale de lírios ou um quase
porque isto será sempre
um poema inacabado
(* poema extraído da Revista Mallarmargens, 27.09.2016)
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PEQUENO BOSQUE DE ÁRVORES GIGANTES
eu
emigrante
abro a janela
para as serras marítimas
à frente
às terras
que se desdobram
[na languidez
amorosa e curva]
como uma cauda do mar
meus olhos alcançam seu corpo
e carrego
um dedal dourado
para não me ferir nas lanças
gigantes
espinhosas
da vegetação longínqua
vejo
ao fim da tarde
o ourives do sol
tecer um manto verde
como uma envoltura
sobre a cabeça dessas árvores
habitantes secretas da serra
às vezes as vejo voar
tornam-se leves
para avistar as barcas
passando além da sinuosidade
lá ao horizonte
eu
emigrante
me visto com os dedais do sol
para tocar o pequeno bosque
para trazê-lo
e navegar sua túnica
desconhecida
espinhosa
gigante
(* poema extraído da Revista Ruído Manifesto, 06.03.2019)
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CORPO INCONSÚTIL
a linha do rio costura
o céu e a terra
a linha da terra costura
o céu e o mar
a linha do céu dobra
o inferno ao meio
contornamos o sol
a linha do tempo
não se dobra
mas fia
teia de si mesma
acalenta o vento
e costura
a linha dos dias
(* poema da plaquete O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas)
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ODÍLIA
Amanheceu
os barcos vieram
sentimos o cheiro dos peixes
recém colhidos
o cheiro do pão
saído do forno de barro
que a velha amassou
com suas mãos salobras
farejamos no ar
o tempo de fazer
do grão e da areia
o saber [oculto entre as águas]
o mar vai
o mar vem
em feixes líquidos
lavando o mal
fabricando
parindo
filhas e peixes do sal
silenciosamente
[um talismã]
(* poema do livro Corpo de peixe em arabesco)
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A CASA ME CABE
A casa não me cabe
Me sobra um corpo
um nome escrito
que desaparece
nas paredes
No chão
No ar
Da interminável noite
Entre águas descendo o rio
Mergulho
O vestido se esgarça
Como um mapa de pontos
Marcando
A terra do quintal
Que se espraia
Com suas mulheres
Colhendo as frutas
Ao amanhecer
A casa me cabe
A casa não me cabe
Seguro a concha das mãos
Apuro o som do mar
As pedras marinhas
As ondas inquietas
Que rugem
Que não se calam
sob esse chão
(* poema publicado no Jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, 30.03.2021)
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ARS MEMORIAE
Tenho uma vaga lembrança
De um pássaro
De um mar
De lembrar essa vaga
Essa água
De reprise de ondas
Filmes desbotados
De sombras
Marcas
De patas úmidas
De animais ao redor da casa
Peixes de celofane
Tenho uma vaga
Que se vai
Que se vem
Alga caravela de fogo
Boiando
Como uma chaga
Essa água
Chamada lembrança
Vagando chegando
(* poema publicado na Revista Acrobata, 19.08.2021)
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SENHOR
que as nossas vacas andem prenhes
e as ovelhas plenas de lã
que a chuva prepare a terra
no estrume pungente da manhã
e fecunde os campos
Senhor dai-nos o canto
dos doidos desenganados
dos lobos esganiçados e os frutos senhor
bicados marcados apodrecidos no chão
em que os pássaros os estranhos pássaros
revolveram exalando semeando
transpirando latejando
revirando a terra em busca de outro amanhã
(* poema publicado no livro Fia)
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.
fotografia do arquivo pessoal da autora
JUSSARA SALAZAR é natural de Pernambuco e reside em Curitiba/PR desde 1985. É poeta, artista plástica e tradutora. É mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná, e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Faz parte de 'Dedo de moça - uma antologia das escritoras suicidas' (Terracota/2009). Publicou poesias em várias revistas e antologias brasileiras e internacionais. Edita a revista eletrônica de arte e literatura 'Lagioconda7'. Também criou e editou o projeto editorial e gráfico de revista 'Et Cetera' (2002/2005). 'Sua poesia se expressa a partir de matrizes pesquisadas (cantorias, incelenças, rezas), buscando restaurar o sagrado na vida (ou na morte) e na arte'.
Livros publicados: Inscritos da Casa de Alice (Tipografia do Fundo de Ouro Preto/1999); Baobá - poemas de Leticia Volpi (Travessa dos Editores/2002); Natália (Travessa dos Editores/2004); Coraurissonoros (Buenos Aires, 2008); Cantigas da árvore votiva (Bolsa Funarte de Criação Literária/2009); Carpideiras (7 Letras/2011, finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012); O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas (plaquete, Arqueria Editorial/2014); Fia (Demônio Negro/2016); Corpo de peixe em arabesco (Kotter Editorial/2019); e O dia em que fui Santa Joana dos Matadouros (Cepe/2020, Prêmio Hermilo Borba Filho de Literatura 2020).
PEQUENO BOSQUE DE ÁRVORES GIGANTES - O bosque é pequeno, mas o poema da Jussara Salazar é gigantesco. Realmente maravilhoso esse poema. Parabéns, Jusssara.
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