A POESIA DE RESISTÊNCIA DE NEIDE ALMEIDA | PROJETO 8M

fotografia do arquivo pessoal da autora 

8M (*)

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
"Dias mulheres virão", 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)


Mergulhe na tocante poesia de NEIDE ALMEIDA:


NÓS

Despida de antigos conselhos
abro meu corpo
e incorporo 
os santos que pedem abrigo.
Me desfaço de laços
e me cubro apenas
com a delicadeza de panos atados
por precisos nós.

(* poema publicado no livro Nós - 20 poemas e uma oferenda e na coletânea Elas e as letras)

capa do livro Nós - 20 poemas e uma oferenda 

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ALFANJE

Não se cala uma mulher 
com máscaras, nem de ferro, nem de 
flandres. 
Sua verdade é lâmina afiada,
rompe todas as mordaças. 

Não se cala uma mulher 
com açoites, chicotes.
Sua indignação é veneno contra o feitor,
bálsamo na carne dilacerada. 

Não se cala uma mulher 
com mãos e gritos de homens prepotentes. 
Sua palavra é lei, constituição 
que denuncia e há de punir. 

Não se cala uma mulher 
com golpes de botas, pau de arara ou 
palmatória. 
Sua letra é fogo
se inscreve na memória de todas nós. 

Não se cala uma mulher 
com a faca fria da indiferença. 
Sua presença é fortaleza 
reinventada a cada geração.

Não se cala uma mulher 
com voz de mando em ilegítimos 
tribunais. 
Somos muitas e, de cabeça erguida,
permaneceremos em desafio. 

Não se cala uma mulher 
com balas, nem de chumbo, nem de prata. 
Seu silêncio verte-se em fúria, ventania
diante de cada tempestade. 

Não se cala, uma mulher!

(* poema publicado na coletânea Um girassol nos teus cabelos: poemas para Marielle Franco)

imagem do Pinterest 
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CORPO

Meu corpo é um campo de solo revolto
sob pés guiados por tambores.
Meu corpo é um campo aberto,
arena de muitas disputas.

Meu corpo é um campo sagrado
habitado por ritos
de vida e de morte.

Meu corpo é um campo marcado
pelo movimento das águas 
pela força dos ventos.

Meu corpo é um campo
de silenciosas batalhas
atravessado por rios sinuosos
alimentado por incontidas raízes.

Meu corpo é um campo ocupado
por séculos de rebeldia 
por cantos de liberdade.

(* poema publicado no livro Nós - 20 poemas e uma oferenda e na 2a. Coletânea Poética Mulherio das Letras)

fotografia do arquivo pessoal da autora, por Mel Gomes
-*-

OJÔ

Onde se esconde o silêncio
firmo o olhar mais profundo
e nas escuridões
me deixo atravessar
por rezas, pelos cantos aos meus orixás.

Onde intuo o silêncio
não chego sem me banhar
com água de lavanda
tomar água da quartinha.
Só depois, sem mistério,
me deixo ficar.

Onde habita o silêncio
entro sempre de pés descalços.
Reverencio
e me ponho a escutar
de corpo inteiro.

(* poema publicado na Revista Philos, 28/11/2018)

imagem do Pinterest 
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ABISMOS

Os abismos por vezes destroem
ilusão de que o fundo
nunca chega.
Falsa promessa de que
a queda será eternamente ensaio.
E assim me deixo cair.

Outras vezes os abismos
amedrontam.
Desamparo
susto de me perder
no desconhecido.
Busco equilíbrio.

Mas os abismos também
fascinam,
sedutores voos sem asas.
Noites fechadas
plenas de vozes.

Abro os olhos
e entregue
me confundo
com todos os rumores
que me antecederam
inquietam
e me arrancam dos imensos silêncios
que ainda habitam em mim.

(* poema publicado na Revista Philos, 28/11/2018)

imagem do Pinterest 
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KALUNGA, AUÊ

Em nossos mares
ainda são muitos os navios malditos
imensos, sufocantes porões
odor de maresia e sangue
ainda inundam as memórias de nossa gente.
Essas águas não nos embalam
arrancam a vida de nossas entranhas
devoram nossos filhos
enlouquecem as mães de nossas crianças.

O fundo dos oceanos
está coberto de disformes pedras de sal
tíbias, mãos, crânios
fósseis curados por lágrimas,
vertidas das vísceras de nossos ancestres
que desde sempre permanecem
invocando as mãos de Xangô.
Encosta o ouvido na concha,
escuta o grito!

A areia das nossas praias
está repleta de banzo
corpos de nossa gente
estirados sob o sol
continuam sendo devorados.
Bandos de aves de rapina
roubam dos nossos
o pulso, as vértebras, o vigor.
Sente na pele o eco dessas dores!

As ondas dos mares que somos
estão sempre tão cheias
prenhes, reverberam indignação.
Arregalamos os olhos e nos lançamos nas águas mais turbulentas
nossas meninas, os meninos nossos
sendo surrados nos recifes
jogados em alto mar como redes de pesca
arrastados, esvaziados
extenuados,
ainda assim nos cabe
converter essas águas
Kalunga, auê
Kalunga, auê
Kalunga, auê

(* poema publicado na Revista Gueto, 19/12/2019)

imagem do Pinterest 
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TRAVESSIAS 

Minha mãe 
sempre teve medo
do mar.
Intrigada me pergunto:
o que a ameaça?
A imensidão poderosa 
das águas?
Ou a ancestral memória 
da longa travessia?

(* poema publicado no livro Nós - 20 poemas e uma oferenda e participante da intervenção poética do @metrospoficial na TV Minuto, agosto/2023)

fotografia do arquivo pessoal da autora 
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.


fotografia do arquivo pessoal da autora 


NEIDE ALMEIDA é natural do Rio de Janeiro/RJ, e vive em São Paulo/SP. É graduada em Sociologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, com mestrado em Linguística Aplicada ao Ensino pela PUC-SP, e atualmente está cursando pós-graduação em Gestão Cultural Contemporânea. Há mais de 30 anos atua nas áreas de educação, cultura e direitos humanos. Desde 2013 coordena o Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil, em São Paulo, onde gere ações e projetos voltados para  estudantes, pessoas com deficiência, em situação de vulnerabilidade social, atendidos por medidas socioeducativas, idosos e mediadores culturais. Também integra a equipe de consultores na área de relações étnico-raciais do Programa de Direitos Humanos do IBEAC – Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário. Dedica-se, ainda, à produção e avaliação de materiais didáticos. Além de socióloga, escritora - poeta, contista, cronista - é pesquisadora, produtora cultural, professora e consultora na área de leitura, literatura e relações étnico-raciais. É integrante do Conselho Editorial do selo Ferina, da Pólen Livros. 

Livros/zines publicados: Nambuê (zine, Móri Zines -  selo de publicação e distribuição independente, com foco em viés de identidade, gênero, raça e estéticas periféricas -, 2017); e  Nós - 20 poemas e uma oferenda (livro de poemas, São Paulo/SP: Contínuo Editorial, 2018).

Participação em antologias e coletâneas: 
Um girassol nos teus cabelos: poemas para Marielle Franco (org. coletivo Mulherio das Letras, Belo Horizonte/MG: Quintal Edições, 2018); Poemas para combater o fascismo (São Paulo/SP: publicação independente, 2018); Elas e as letras (org. Aldirene Máximo e Jullie Veiga, São Paulo/SP: Versejar Edições Literárias, 2018); 2a. Coletânea Poética Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, São Paulo/SP: ABR Editora, 2018); Espantologia Poética Marielle em Nossas Vozes (edição online, Edições Me Parió Revolução, 2018); entre outras.




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