NAS MARGENS DO SILÊNCIO | UM CONTO DE MARIA FRATERNA

 

fotografia do arquivo pessoal da autora 


UM CONTO DE 

MARIA FRATERNA


"NAS MARGENS 


DO SILÊNCIO"


Há que continuar, não faltará muito para chegar ao refúgio de Blandina, escondida da desumanização que fustiga o mundo.
Aconchegada numa gruta, da branda da serra mais alta, ela apanha bocados de sol dourados e de céu de anil, para ao sono sonhar.
Nestas margens do silêncio ela procura proteção contra a procissão dos fazedores de tudo e de nada, nos corredores esguios, sem rigor ou conhecimento. 
Agora o seu impacto é, junto deste nevão que, lentamente, fustiga sem dor ou piedade, a pressão e os traumas de uma parcela plana de pasto para o gado.
Talvez eu mereça um lugar debaixo deste nevão que não pára de cair, e até consiga limpar algumas vísceras da podridão humana que me devoram.
Raul procurava-a para lá se refugiar!
Era este o seu pensamento, à semelhança do corvo que procura o brilho na Terra, ele queria tudo, até o lume das últimas folhas de samambaias cheias de esporas.
Blandina imaginava-o perdido no nevão.
Até já tinha ouvido isso às pedras cobertas pelo desalinho da neve, antes de ficarem silenciosas como o tempo em lagos petrificados.
E o vento empurrava-o como uma faca afiada a indicar o pequeno refúgio, mas entre o ziguezague do carreiro, as folhas das árvores dançavam e tapavam-no, e ele não conseguia descobrir qualquer pista do trilho. 
Não quero perder-te, Blandina!
Nada é tão bom como o estalar da tua saliva nos meus lábios, mesmo que sinta o corpo quase morto.
A pele estava tão arrepiada de frio, andava numa corrida imaginária dos trevos da sorte, na derradeira tentativa de não deixar congelar o sangue, quase a dormir, ao mudo cantar do rouxinol que acabava de se esvair sem som.
Ainda perdurava o ramo de malvas rosadas e de orégãos verdes que ela colhera na primavera, com o cheiro silvestre.
Se soubesses, Raul! Do meu livro branco, coroado de lágrimas de angústia, enquanto fugias por outros lugares do templo, depois de nos termos amado em tantas manhãs de primavera. 
Agora tenho a pele do corpo, queimada ao sol e ao frio, ela tornou-se rija e enigmática, mesmos os poros já não choram de noite, apenas os ouvidos cantam ecos antigos do nosso amor.
Mas eu sinto dentro do coração que sou filha desta montanha e que, se hoje a amo, foi depois de a ter amado ontem.
A ânsia do tempo é grandiosa e imersa no denso frio destes cristais.
- Se tu soubesses, Blandina! 
- Ai, quanto me arrependo de perder o lugarzinho quentinho a descansar ao teu lado.
- Tenho tantas saudades tuas! Nunca imaginei estes pensamentos, achava-te tão estranha, sempre atrás de mim e a questionar-me todos os lugares por onde ia.
Quando nada o fazia prever, uma avalanche de neve muito pesada acabava de tombar naquele gélido chão.
- Que vem a ser isto, tem compaixão de mim! Já não bastava o frio, agora, tu, a trancar-me ao relento.
Quando, de repente, um vulto chamava na sua direção.
Raul não se conteve. Olhou, olhou o espaço e pensou que era Blandina.
Sim, era ela que dizia:
- Não posso esquecer as tuas letras aprisionadas, mesmo que queira fazer isso. Fiquei a levantar cada telha do telhado da tua escrita. Afinal, hoje, ainda pensarás que não pertencemos ao mesmo mundo, que somos de mundos diferentes? Eu procurei uns pequenos pauzinhos de trovisco para colocar em cima, desses palavrões, e coloquei aquela escada rústica tão limpa com espaço para te mudares para cá. Não vens dum palácio digno de um rei? Sabes que eu quero descansar, estou exausta, tenho medo de existir. 
Raul, pensativo, disse-lhe: 
- As estrelas agora começam a desaparecer, ainda belas e formosas, num tempo ambíguo e sem expressão. 
- Que o nosso coração possa habitar a humildade, e viver em paz, para se refazer na harmonia e na felicidade. 
- Desde que conto aqui o tempo, não tenho o poder de influenciar a vida de ninguém. Nem o último poema que te envolve vingará, saltita na prateleira dos leitores, por isso nunca vai ser lido nem influenciado. Sei lá se existem leitores nas margens deste silêncio. 
- Que o nevão seja um afeto entre a nossa consciência, porque o nosso tamanho é tão pequeno como as trocas que mantivemos. 
- Deixaremos que os teus pequenos gozos te façam um grande gozador, com novos saberes no teu ser.
- Se atravessasse o teu proeminente lugar, conseguiria entender as tuas camadas de entorpecimento na tua barbárie e na origem da tua cultura.
- A essência da tua vida é uma mistura de animal e de espiritual, quando se incendeiam as gravuras do desejo no teu cérebro, não te consigo deter, só pensas em arder.
- E tens asas voadoras?
- Mas agora estamos gelados: 
- Ouço-te as palavras, mas não sei o que sentes. 
- Afinal, o que será que sentes dentro deste nevão?
A música da língua das palavras? O labirinto gelado que nos aprisionou?
O duplo esmagamento que está em curso!

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fotografia do arquivo pessoal da autora 

MARIA FRATERNA (pseudônimo de Maria de Fátima Carvalho da Silva Cardoso) é natural do Minho, Portugal. É licenciada em Direito e trabalha como jurista. 
O seu primeiro livro de poesia, No assédio do tempo (2020), foi um importante acontecimento literário, por integrar o "I Prêmio Literário Ser Mulher 2019". 
Em 2022, lançou o seu segundo livro de poesia, De dentro para fora
A um Deus do céu e outros contos é o seu mais recente livro de prosa narrativa, sendo que o conto O melhor Natal de sempre foi premiado em 2020, "Prêmio Prosa", Vila de Fuzeta, Algarve, Portugal.
É coautora em revistas, coletâneas e antologias poéticas.




 

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