CINCO POEMAS DE ANA MARIA OLIVEIRA

 


fotografia da autora por José Lorvão


AUSÊNCIA

Borbulham portais de luz e movimento
Na casa que foi lar na eternidade das galáxias
Sons que sustentam um passado
Vibrações que fixam à terra o abraço das árvores
Colhendo os figos de mel sem contratempo

Agora transponho a sombra e o pó
O chão levantado as paredes esburacadas ruidosas
Enferrujada e decrépita canalização
Obras adiadas e dolorosas
Um quintal feito de entulho
Como um quadro pintado 
Anunciador da morte e destruição

Saio e acelero pelas ruas estreitas
De um bairro em que habitam fantasmas
Outrora feito de brincadeiras e entusiasmos
Na subida às oliveiras generosas
Crianças dançando sob os ramos admirando sustentações
Na gritaria agitada num salpico de ilusões

Hoje o tempo é impiedoso na prisão em forma de furna
E num ápice entre inspirar e expirar
Os órgãos cansados anseiam fechar-se sobre si mesmos
Comunicam os espectros na vertigem pelo cosmos
Mas assola-me sem controlo uma crise de choro e pesar
Enquanto as cinzas permanecem na urna

Ainda não sabemos lidar com o impermanente
Como assimilar que quem nos deu a vida
Se transformou em pó e já aqui não mora
Que das estrelas nasceu e para elas retorna

 -*-


DESPRENDIMENTO 

A indiferença surge sombria
No distanciamento encoberto pelo cansaço
Agora os passos soam em direção oposta ao meu ser
A respiração tem outros sonhos
Manuseados pelo egoísmo de grandeza
Soberba feita de flores murchas
Vingança camuflada com cheiro a giestas
Com odor doce que desmaia pela casa
Que não me pertence de corpo e alma
Apenas um frio que me invade através de invisíveis frestas

Este enredo cresce como o amplexo da anaconda
Aperta até que o sufoco venha
Até que os ossos estalejem sem dó
Comunicar com o outro que sofre de surdez sem empatia 
Apenas uma energia de afastamento que paira no pó

Remigrei para o palco da tragédia
O gelo persiste e as palavras
São sempre sinónimo de aborrecimento
Desrespeito desprezo indignidade
Mas há um plano de evasão
Desta vez será ao encontro de mim própria
O sol e o vento fazem parte de mim
A água do mar purifica o meu ser
A mata acalenta segredos da terra
Num sono profundo em plácido prolongamento

-*-

 

pintura acrílica de Ana Maria Oliveira 


INVERNO 

Este tempo de alheamento paralisa
A fraca respiração sem visionamento
Esperando o murmúrio dos ribeiros
Combater a doença com um sorriso no rosto
Descansar no final da praia
Depois da caminhada pelo areal
Evitar pisar as anémonas à beira-mar desmaiadas
Saltar para dentro de um filme no refúgio entre paredes
Adiar as escolhas olhando as unhas quebradas

A gata siamesa mira-me paciente
Como se aguardasse um sinal de atenção
Estes felinos adivinham o sofrimento
Observam-nos os esgares vigiam-nos os gestos
Enroscam-se em nós como se ansiassem ajudar-nos
Assiste curiosa às minhas tentativas
Do ritual simples de vestir e calçar
Conseguir a rotina de tomar um banho glorioso
Com a mão esquerda incapacitada o exercício é lento
Torna-se um empreendimento penoso

Crepita a repetição dolorosa de outras eras
Quantas guerras bramidos e dias aflitos
Na ânsia de navegar em rios mansos
Sem jogos psicológicos
Sem manipulações e cercas fechadas
Agora não sustento o silêncio a crispação
É chegada a hora de construir novas calcorreadas

Transpor o portal descorando o livro sobre a mesa
Desenhar símbolos na terra comunicando com o invisível
Precaver-me do frio na gélida aragem
Deixar partir quem nos ignora
Andarilhar pela mata de árvores mortas
Apanhar expectante as flores no campo
Abraçar o paradoxo agarrando a coragem

-*-


ESPÍRITO FELINO

Baguera espreita-me
A pequena felina examina-me tranquila
Sabe que estou em stresse isolada
Do mundo que agonia
Da sociedade que definha numa imagem profética
A náusea e o vómito dos fratricidas
Dos governantes que escravizam o seu povo
Defraudando o que a todos pertence
Amealhando fortunas sem ética

A gata siamesa na sua inteligência felina
Sabe que sofro
Pois vem amiúde lamber-me a mão esquerda fraturada
Espera que me acalme
Me deite confortável em aconchego
E depois aninha-se no meu colo
Enquanto os humanos alcançam os fins sem olhar a meios
Se misturam com vícios escravos de egoísmo e receios

Que patetice!
Pobres homens navegando na mediocridade das ilusões
Oligarcas enforcados na ganância quais espectros alados
Enriquecimento fácil a troco da dignidade
Ilhas paradisíacas transformadas em lugares estratégicos
Onde se projeta o abate da humanidade
E nós incautos drogados e sonolentos de olhos fechados!

A gata siamesa escuta-me os pensamentos
Mas paira um ressoar feito cansaço como ato final
Talvez de escravo soltando sopros de socorro 
Num mundo por um fio que ninguém quer saber
Mas os verdugos tratam negócios de última hora
Quem sabe comprando a própria vida a troco da destruição total
Regozijando-se que as marionetas que manipulam
Lhes darão indubitavelmente a vitória

Anunciam-se tempos de paranoias
Ações psicóticas a fervilhar no centro da terra
A gata siamesa sabe por que meandros o caos é feito
Mas serenamente adormece enroscada no meu leito

-*-


ENERGIA DE RENOVAÇÃO

A oscilação do mar compactua com o sol
Acolhe a sintonia das gaivotas
A sustentação das embarcações
As canas de pesca dos pescadores
E comunica em frequência com a luz do farol

A vibração do oceano sugere realezas
Cria enredos de amor surfistas
Dança com os limos e algas
Em gastronomias de aromas infinitos
Com mergulhadores em êxtases nas profundezas

O bailado das marés
Harmoniza melodias de valsas e tangos
Deixando rastos na areia molhada
Pela espuma branca das águas
Em sinais de enigmas e alegria
Ilumina a mente orientando consciências
Para recantos paradisíacos de descanso e empatia

A superfície agitada de prata interminável
Acena às crianças brincando na praia
Abraça os pais com carinho entre risotas
Em resposta à gratidão que flutua no ar
Por esta energia imensa em movimento
Desejando transformar-se em diferentes vibrações
Em aparências e oscilações que acalentam a vida
E neste transitório sou pequena rocha persistente e firme
Que momentaneamente se deixa beijar

fotografia da autora por José Lorvão

ANA MARIA OLIVEIRA é natural do Alentejo, Portugal. Licenciada em Filosofia, lecionou durante algum tempo, estando atualmente ligada a atividades em infantário.

Livros publicados: Grito de liberdade (poesia, 2008); Espírito Guerreiro (poesia, 2014); Estilhaços no Caminho (poesia, 2021); Ao encontro da Terra (poesia, 2022); e Devir Quântico (poesia, 2022).



 

 

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