DOIS CONTOS DE ANA MARIA LEÔNIDAS MOURA

 


fotografia do arquivo pessoal da autora 


Dois contos de 

ANA MARIA LEÔNIDAS MOURA 


IMPULSO 


As mãos desgastadas de sabão e água cheia. Ela lembra que o cheiro de sabão é tão característico como Maria havia dito. Mas, diferente do líquido desejoso e límpido da pia, da qual os dedos se aterram. Que gelado! Há um frescor ao gesticular entre ele, a movimentação e o choque causado pela força das águas. Ela é filha do povo das águas, escuta seu clamor, vem de tambores e cantigas nunca ouvidas. Limite, há um limite, é pouco. É muito pouco... O corpo seco, agitado, clama pela corrente que abraçava as suas mãos. É possível essa sensação de nudez? 

Os dedos esguios estão eriçados até o cotovelo, aguardando pelo beijo molhado. Não havia como ser devidamente beijada com essa profundidade, ela não a tem por inteiro... desdobra-se até endurecer à procura de algo... veja! Eternidade naquilo que é desconhecido e vantajoso pela natureza. No entanto, o buraco da pia apontava para o alcançável. Não consigo! E recolhe as mãos do maleável, trêmula, o corpo treme, a pele não se reconhece. 

O botão do limite a encara, por impulso a retira. Toda a água escorria para um buraco escuro, que sugava, sugava, e onde é para que isso ia? Canos? China? Ela cambaleia perante o rastro, o corpo se edifica e os sentidos se afloram. Não, não, isso não! Grita: quem? O corpo, a profundidade ecoa dentro de si, tal como filha de Iemanjá. Não a vê, mas sente nas correntes onduladas que movimentam e eletrizam o inerte. Ela lembra do mar, a completude do abraço que beira ao infinito, que beira a si. O encanto, se é que podemos chamar disso, se quebra quando um familiar a chama, embora não conheça o desconhecido, sabe que dessa viagem retornou com um amigo.

imagem do Pinterest 

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DOS BARES

 

No barzinho ao lado eu os visualizava fixamente. Deste lado da janela as doses de pinga e conversas acompanhadas de felinos tornaram-se corriqueiras. De segunda a sexta isso se repetia, como um ciclo que só se concluía na noitada. Eles tornaram-se conhecidos meus, bêbados estendidos em longas prosas, e quem ia por essas bandas era digno de mau-olhado. Logo quase toda vizinhança estava por lá. Entretanto, somente três figuras se destacavam. Embora não soubesse seus nomes, isso nunca me impediu de visualizá-los. 

O primeiro era Carlos, o seu ofício era vender picolés, talvez fosse por isso que o carrinho ficava ao seu lado. O segundo era José, o seu trabalho o ocupava das 7:00 às 16:00 horas, em uma loja imobiliária. De todos, o mais bem-sucedido, como também o mais esnobe. No entanto, a terceira personalidade era curiosa e difícil de designar um nome, vou apelidar de Zé, pois combina com o seu anonimato. Eles jogavam dominó enquanto conversavam. Tenho quase certeza de que estavam falando sobre o novo relógio que José comprou, esse que ele levava no pulso e apontava para os colegas a sua riqueza. Carlos o encarou, depois olhou para o carrinho, nunca poderia comprar algo assim, pelo menos é o que sua esposa gritava diariamente. Zé não se importava, olhou para o relógio e já se preparou para a próxima jogada. Como eu disse, uma figura curiosa.

Os companheiros das tardes e madrugadas dão-me uma sensação de conforto, desconhecidos que se juntam sem saber que há uma companheira por perto. Despeço-me deles todas as noites, é difícil acompanhar os seus movimentos. Só que desta vez não consigo manter-me em paz, Carlos aparentava estar estranho dos dias habituais, pois  normalmente é o mais comunicativo. Hoje, no entanto, parecia que o gato tinha comido sua língua, ignorava os amigos e seus diálogos, principalmente o do Zé, sinto uma antipatia vinda de sua parte.

No dia seguinte, percebi algo de estranho ao olhar pela beirada da janela, Zé estava distante dos jogadores de dominó, situava-se em uma mesa distinta, enquanto José aparece de camisa nova, na real ele sempre se veste de forma pomposa. Carlos era o mesmo, o rosto miserável sempre estava estampado em sua face, porém, umas pequenas e leves olhadas eram apontadas para Zé. Já sei, brigaram, quando? Não vi, talvez quando me retirei no anoitecer. No entanto, não parecia um olhar de raiva, culpa talvez? Ambos retribuem esses olhares simultâneos e exalam um suspiro. Isso foi fora do comum, quase como se nutrissem algo um pelo outro. Faz todo sentido, pense, Carlos sempre apresentou incômodo pela presença de Zé, indícios o suficiente de um romance. José não se importa com isso, pois somente tem atenção ao seu mundinho material, mal sabe da afeição dos amigos. Por curiosidade, mantenho-me observando mais tempo do que esperava. Nada de novo ocorre, somente que as trocas de olhares se tornam mais frequentes, o esnobe se acha durante o jogo porque é a segunda vez que consegue bater o dominó. Consigo até imaginar a conversa.

— Ah! Eu de novo — entre risinhos de vitória vangloria-se José.

— Tá lesado hoje? Tu tens sorte de eu não estar apostando.

— Do que eu ia apostar? Minha vida? — ponderou o amigo.

— Só tô dizendo, só dizendo — finaliza o ganhador, partindo para outra jornada.

Foi se perdendo a claridade, como também a presença de José. Fico atenta, é agora ou nunca, Zé se levanta e senta ao lado de Carlos, ambos se olham com carinho e choram por um tempo. Horas se passam de muita conversa e lamento. Até que se levantam, apertam as mãos e um vai para o seu caminho. Nada de abraço, beijo ou sequer demonstração de afeto. Chego tarde da rua, vejo que o bar está aberto, entro em casa me posicionando no cantinho da janela, somente José está lá, na mesma mesa, jogando sozinho, olhando para os sapatos novos, sem ter ninguém para se gabar e fica assim o resto da noite.

imagem do Pinterest 
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ANA MARIA LEÔNIDAS MOURA é natural de Teresina (PI). É estudante de Letras/Português na Universidade Federal do Piauí (UFPI). De vez em quando diz alguns ‘’aforismos’’, e mantém a mente aberta para percursos desconhecidos.




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