A POESIA EXISTENCIALISTA E INQUIETANTE DE NEIVA DE CAMILLIS | PROJETO 8M
fotografia do arquivo pessoal da autora
8M (*)
Mulheres não apenas em março.
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
"Dias mulheres virão",
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)
Conheça a poesia existencialista e inquietante de NEIVA DE CAMILLIS, através de poemas extraídos dos livros Viração, A voz do silêncio, Sol de primavera e A faca e a flor:
BARULHOS
Eu gosto de ficar assim,
Ouvindo os barulhos
Saboreá-los de longe
Imaginar seus cheiros
Adivinhar suas cores
Definir as matizes
Decifrar seus recados
Lembrar significados
Delinear seus contornos.
Eu gosto de ficar assim,
Na penumbra do meu quarto
Ouvindo passarinhos
O som dos vizinhos
O barulho da rua
Crianças em algazarra
Cães latindo, carros passando, ônibus parando e partindo.
Ao longe na estrada, as sirenes
No céu, os aviões em voos para seus destinos.
Eu gosto de ficar assim,
Aqui,
Abstraída no segundo dos sons
Escutando
Desfrutando
Vivendo sem sair do lugar.
Muitas vezes, como criança,
Ouvindo e sonhando
O novo e o desconhecido.
(do livro Viração)
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DOR
Dor doída, doente, dolente
Que dói no peito da gente
Que não tem jeito, mas sente
Dolorida como ferida exposta.
Porque dóis assim tão pungente,
Se não te quero,
Se não te espero,
Simplesmente te fazes presente?
Presente de grego
Presente de Tróia
Presente que amola
Presente que não descola.
Dor doente, doída, doida
Dóis como se fosse gume de faca
Rasgando o músculo
Interrompendo o fluxo.
Estilhaço de bala perfurando a carne.
Dor doída
Doente
Doida
Que só dói
No peito e na mente da gente...
(do livro Viração)
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SHAKESPEAREANDO
Eu acho que sei tudo
E nada sei
Eu acho que sei muito
E muito tenho que aprender
Eu acho que um pouco já sei
E aos poucos vejo que muito pouco eu sei
Eu sempre acho que algo sei
E a cada dia eu vivo mais o
"só sei que nada sei"!
(do livro A voz do silêncio, p. 38)
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LUA DO FAROL
Quando a lua chegar ao topo
Qual lampejo de sol raiado
Vou te esperar mais que firme
Com toda inteira sorte
No abraço fogoso
Que jorrará desde o braço
'Omilíades' de sentimentos
Brotarão em felicidade ardente
Beijos querendo beijos
Corpos pelos terraços
Fugidios abraços
Vívidos no tempo
Em mais que lamento
Confundir-se-ão com a madrugada
Perder-se-ão pela lua
Com a lua da alvorada
Através da lua
No céu da estrada!
(do livro A voz do silêncio, pp. 116-117)
ilustração de Carlos E. M. G. Hausen, do livro A voz do silêncio
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OS HOMENS E AS CONSTRUÇÕES
Homens de construção
Homens da construção
Homens na construção!
Quanto do que constroem
Eles sabem
... Para o que serve?
... Para quem serve?
... Quem se serve?
... O que se servirá ali?
Alegrias
Tristezas
Ilusões
Grilhões
Muitas carnes
Amizades
Atrocidades
Risadas
Radiações
Traições
Amores
Saladas
Dissabores
Desamores
Confusões
Confissões
Quantos constroem?
Quantos destroem?
Quem é ou será seu patrão?
Qual o vilão?
Quem é o falastrão
Na busca do milhão?
De toda forma a sua vida é dura
Sua dor invisível
Sua tarefa pesada
Esquecida
Ficando apenas
O resultado
Valorizado
O guisado
Guisado de primeira
Para a cozinheira preparar
Talvez a mais gostosa carbonara
Para a fofura daquela senhora!
Mistura rara esta
Por fira da obra, oh!
E a cor do firmamento
Por dentro, o peso do sofrimento.
Respondam-me, então
Por que nas inaugurações
Só participam os figurões
E dizem não aos 'bastiões'
Que empinaram e subiram todos os tijolos
Resistiram a todas as intempéries
Com suas cabeças de plástico?
Cabeças duras, sim
Ou duras cabeças...
Todas protegidas para que ao meio-dia
Possam olhar suas marmitas
Repletas, repletas, sim
De feijão preto aflito
Feijão preto frio ou frito
Louco para ser mastigado
Pois cansado de estar trancado
No escuro calor daquela panela
Louco para ser devorado
Em poucos segundos
Segundo o fluxo determinado
Dos dentes batentes
Candentes no refluxo do trabalho do dia!
Digam-me, então
Para quê?
Por quê?
Valerá o sol queimante do próximo dia?
(do livro Sol de primavera, pp. 64-68)
capa do livro Sol de primavera
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OUTRO POEMA...
Tu
Tu que reviraste
Em luz
As horas do tempo
Vem
Vem me receber
Tu
Sol lua estrela
Estrela guia
Guia o caminho dos meus passos
Me envolve
Penetra
Tu
Penetra em meu rastro
Em meu compasso
Em meu espaço
Em meu poço
Me faz uma
Me faz feliz.
(do livro Sol de primavera, pp. 110-111)
ilustração de Luís Claudio M. Vargas, do livro Sol de primavera
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POEMAS COM OU SEM DATA...
Poemas não têm data
Poemas apenas são
O momento
A luz
O relâmpago
Oportunidades
Deformidades
Conformidades
Os poemas são
Os poemas vêm
Os poemas saem
Os poemas voam
Penetram
Alteram
Gritam
Os poemas movem e se movem!
(do livro A faca e a flor, p. 44)
capa do livro A faca e a flor
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APRENDIZAGEM
Eu aprendo
Aqui
Entre quatro paredes
Em um pequeno jardim
A arte de esperar.
VOAR
Um dia assim sairei voando
Soltando as asas
Em preto e branco
Deixando as cascas
A cada voo
A cada bater de asas
A cada respiro
Até abandonar-me
Distante
Em algum grão de areia
Em alguma praia longínqua
Repleta de ar
Sons
Sonhos
Coloridos
Repleta de universos!
(do livro A faca e a flor, p. 61)
fotografia de Carla Rodrigues, p. 62 do livro A faca e a flor
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PÉS DESCALÇOS
Falei
Falei e parece não disse nada
Falei, mas não me ouviram
Não entenderam
Não quiseram entender
Falei
Falei para mim mesma
Para fazer eco em minha mente
Em minha pseudo loucura
Para descer do salto
E andar com os pés descalços
Pisar na realidade
Abandonar a ilusão...
Porém não vi o sinal
Insisti no erro
Falei...
Continuei falando
E eu mesma não me ouvi!
Parei
Estanquei
Refleti
No silêncio me ouvi!
Hoje sou outra
Hoje sei
Sei que o mal existe
Que nossas vibrações atraem
Que os avisos são válidos
Que a atenção é preciosa
Que os anjos guardam
Que o amor se faz em diversas dimensões
Que me tapo os olhos por opção
Que tenho valor
Que sinto
E agradeço por existir
Que estou aqui como posso não estar
Quebos pensamentos têm força
As palavras são pérolas
Devemos saber proferi-las
Não as desperdiçar
Nem dizê-las ao léu
Que devem sim
Ter consistência
Vivência
Consciência
Hoje...
Hoje sim...
Hoje sei.
Busco a unidade
De pés descalços!
(do livro A faca e a flor, pp. 87-89)
fotografia de Carla Rodrigues, p. 88 do livro A faca e a flor
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.
fotografias da autora, por Adriano Trindade, do livro A faca e a flor
NEIVA DE CAMILLIS é natural de Porto Alegre, RS e atualmente vive em Viamão, no mesmo Estado.
Graduada em Engenharia Agronômica pela Faculdade de Agronomia da UFRGS, Porto Alegre/RS, e especialista em Ecologia Humana pela Unisinos, São Leopoldo/RS. É massoterapeuta pela Escola Lafayete, Porto Alegre/RS e, mais tarde, também estudou Shiatsu, na PUC da capital gaúcha. Estudou Reiki e Bioenergética em cursos independentes, em Porto Alegre/RS. É escritora e poeta.
Sobre sua escrita: "Escrevo desde jovem, apesar de muitos dos escritos terem sido extraviados nos revezes da vida e nas diversas mudanças de moradia. Escrevo porque gosto, é certo, mas também porque preciso. Muitas vezes, é como o ar que respiro, sem o qual morreria por dentro. Porém, estranho que esta sanha de escrever não se dá na mesma cadência diária do respirar. Ela obedece a outros parâmetros, atributos mais sutis e variáveis, e sobre os quais eu não tenho o mínimo controle. Os sentimentos e pensamentos vêm e se instalam e, aí, a "sofrência" ou o transbordamento se faz poesia." (Neiva De Camillis, in: "Sol de primavera", pp. 6-7).
Livros publicados: Viração (poesia, edição da autora, Viamão/RS, 2015); A voz do silêncio (poesia, edição da autora, Viamão/RS, 2016); Sol de primavera (poesia, edição da autora, Viamão/RS, 2017); e A faca e a flor (poesia, Camino Editorial, Viamão/RS, 2024).
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