fotografia do arquivo pessoal da autora
A PROSA E A POESIA DE
VIOLANTE SARAMAGO MATOS
DUAS CRÔNICAS DO LIVRO
"DE MEMÓRIAS NOS FAZEMOS"
capa do livro De memórias nos fazemos
LIVROS
Sempre houve em nossa casa um escritório, um lugar que era mais ou menos sagrado. Pelo menos para mim que, pequena, me impressionava com aquelas estantes cheias de livros e uma secretária com papéis, onde não estava autorizada a mexer.
E pelo chão. Sempre que o meu pai se sentava à secretária, rapidamente o chão em volta se enchia de grandes livros. Uns anos mais tarde, percebi que eram dicionários, enciclopédias, livros de consulta.
E havia o silêncio. Pai a trabalhar, a ler, a escrever, à mão ou na máquina, significava silêncio na casa. Se preciso fosse, ou se o trabalho da mãe produzia barulho - as chapas de cobre ou zinco de onde haveriam de sair belíssimas gravuras não se podem fazer em silêncio - fechavam-se então as portas. Aprendi que o trabalho dos outros não deve ser incomodado. Que o devemos respeitar.
Não me lembro, já o disse várias vezes, de o meu pai me dar brinquedos ou doces. Mas recordo bem os dois primeiros Livros (com L maiúsculo) que me deu: A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia e Coração. Nenhum tem data, mas sei que me foram dados por esta ordem, quando eu teria uns treze, catorze anos. São livros inesquecíveis que me provocaram sentimentos e emoções muito diferentes. Numa prateleira de uma estante de casa, a Selma Lagerlöf, na sua edição da Editora Educação Nacional, encosta-se ao Edmundo de Amicis, numa edição mais recente da Colecção Gôndola Juvenil, da Presença.
Com ambos aprendi duas lições: a primeira é que nunca lemos tudo da primeira vez que lemos; a segunda é que temos que aprender a ler para lá do que as palavras nos permitem ler.
E o mais curioso é lembrar-me do que se passou, quando o meu pai me deu o primeiro. Eu estava sentada a estudar no meu quarto. Ele entrou com um livro na mão e disse: Toma, já é altura de começares a Ler! Não vou dizer, como é evidente, que o livro tem o cheiro dele - é caminho por onde não vou. Mas quando pego nele, há um não sei quê, isso há!
Talvez se chame saudade.
(pp. 35-36)
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MERGULHOS
Se é verdade que de memórias nos fazemos, também nos fazemos dos livros que vamos lendo ao passar dos anos, sendo certo que o que lemos num livro tem muito que ver com o que lá somos capazes de ler.
Não há leitores iguais, como não há leituras iguais. E as várias leituras feitas pela mesma pessoa são como paisagens que observamos por diversas vezes, encontrando sempre coisas novas. E tal como há paisagens que me agarram ou me emudecem, também acontece que, por uma razão ou por outra, há livros que me chamam mais a atenção ou, tão simplesmente, sobre os quais preciso de estruturar a leitura, tomar notas, arrumar ideias para compreender.
Podem nem ser os livros de que gosto mais, que me estão mais próximos - e já disse várias vezes que o Ensaio sobre a cegueira é o meu livro de cabeceira - mas são certamente livros aos quais precisei de dedicar mais tempo, mais atenção, mergulhar mais fundo. E por isso são sempre livros que também me formam de um modo particular.
Alguns desses mergulhos aqui ficam, na absoluta certeza de que não são escritos teóricos nem se encontrarão reflexões sobre literatura, processos linguísticos, estilos. E como há muito tempo aprendi que só devemos falar do que sentimos, do que sabemos, do que nos toca, o que aqui fica é só resultado do que a bióloga, que é também a filha, é capaz de ler, refletir e dizer do que leu.
Possam eles (os mergulhos) despertar curiosidade, aliciar para mais leituras, permitir descobertas, quem sabe levando a outras interpretações.
Possam os mergulhos criar novos leitores da obra do escritor e novos descobridores do homem.
(pp. 97-98)
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CINCO POEMAS DO LIVRO
"CONVERSAS DE FIM DE RUA"
capa do livro Conversas de fim de rua
DESPEDIDA
A gente vai-se despedindo todos os dias um bocadinho.
Um dia, sem dar por isso, já não se despede.
(p. 6)
imagem do Pinterest
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OS PÉS
Quando começamos a andar, ainda não sabemos que precisamos dos pés.
Quando crescemos, contamos com eles para nos levarem onde queremos ir.
Se nos iludimos sobre quanto valemos, ali estão eles, os pés, a sussurrar
que é melhor termos calma porque eles já não estão no chão.
Se não damos atenção, o mais certo é cairmos.
Quando, e se, acontecer que passamos a tudo fazer para ignorar o sussurro,
já deixámos de ser os tipos que fomos e nem nos importa o que diz o espelho lá de casa.
(p. 7)
imagem do Pinterest
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DEVE SER
Falta o tempo para fazer o que gostaria
Falta o tempo para ver um mundo diferente
Falta o tempo para ter o velho ânimo para reagir
Sobra o tempo para saber de tanta miséria
Sobra o tempo para conhecer tanta desumanidade
Sobra o tempo para não perceber para onde caminhamos
Deve ser o sentimento dos anos a passar.
Deve ser dos anos,
deve ser.
(p. 8)
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MEDIR A TRISTEZA
O termómetro digital deixa-se ler
e está perfeito.
O medidor da tensão diz
que a máxima é 12
e a mínima exatamente metade,
63 são as pulsações.
Tudo nas previsões.
Excelentes as hormonas.
Hematologia, microbiologia,
bioquímica e marcadores
tudo como é suposto!
É o que diz o relatório
reunindo os resultados
dos tubos e do microscópio.
Coração e outros órgãos
vistos por fora e por dentro,
tac's, eco's e rx,
ressonâncias, pet scan,
nada que gere incerteza.
Porém não param as lágrimas.
Como é que se mede a tristeza?
(p. 13)
imagem do Pinterest
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PERSPECTIVAS
Costuro os panos de tecido,
bordo as tecituras dos dias,
visto-me por fora,
construo-me por dentro.
A formiga corre, zelosa, para o formigueiro.
A abelha procura, incansável, um pouco mais de pólen.
(p. 14)
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fotografia do arquivo pessoal da autora
VIOLANTE SARAMAGO MATOS é natural de Lisboa, Portugal, e atualmente reside em Funchal, Ilha da Madeira, Portugal. Licenciada em Biologia, foi professora do ensino secundário e técnica de controle laboratorial de alimentos. Também exerceu atividade extra-profissional em questões ligadas ao ambiente e ao ordenamento do território. Foi ativista e dirigente da luta estudantil contra a ditadura e a guerra colonial e, em 1973 passou 3 meses na prisão de Caxias/PT. Após 1974 continuou a exercer atividade política, tanto em partidos quanto em movimentos cívicos, como o de apoio ao Timor-Leste contra a guerra do Iraque, e o a favor da despenalização da IVG (interrupção voluntária da gravidez ou aborto voluntário). Foi Deputada da Assembleia Legislativa da Madeira, entre 1996 e 2000, e em 2006. Também exerceu o cargo de Vereadora na Câmara Municipal do Funchal, entre 1997 e 2001. É escritora e artista plástica, publicou livros para a infância, crônicas, poemas e trabalhos visuais. É filha de Ilda Reis, reconhecida artista plástica portuguesa, Prêmio Europeu das Artes e das Letras, e de José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura.
Livros publicados: O Quinas ganha uma casa (infantil, Vila Nova de Gaia/PT: Editora 7 Dias 6 Noites); Na primeira pessoa (Vila Nova de Gaia/PT: Editora 7 Dias 6 Noites); Beijinhos (infantil, com Luísa Antunes Paolinelli, Porto, Viseu, Lisboa, Aveiro/PT: Edições Esgotadas, 2011-2021); Quinas com a Kali no Paúl (infantil, Edições Esgotadas, 2011-2021); A história de um instante (Funchal/PT: Nova Delphi, 2012); Quinas - à descoberta (infantil, Editora O Liberal, 2015); Quinas, pelo mar fora (infantil, Edições Esgotadas, 2018); Quinas, uma viagem à Ria (infantil, Edições Esgotadas, 2019); Tixa a Presidente! (infantil, com Luísa Antunes Paolinelli e Raquel Lombardi, Edições Esgotadas, 2019); Pintas e Pirata - Detetives de pata cheia (infantil, Edições Esgotadas, 2020); Quando o verão amadurece (crônicas e contos, Edições Esgotadas, 2020); Escritas da pandemia com caneta e pincel (poemas e crônicas, Edições Esgotadas, 2021); De memórias nos fazemos (crônicas, Edições Esgotadas, 2022; publicado também no Brasil, Editora Rua do Sabão, 2022); Conversas de fim de rua (poesia, Coleção PerVersas - literatura de autoria feminina - volume XIV, Santo André/SP: Alpharrabio Edições, 2023).
Maravilha de homenagem a essa escritora portuguesa tão singular, que tanto nos orgulha em tê-la no catálogo Alpharrabio Edições. Você sempre certeira, Nic Cardeal.
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