A POESIA INTENSA DE MALU BAUMGARTEN | PROJETO 8M
8M (*)
Mulheres não apenas em março.
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
"Dias mulheres virão",
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)
Mergulhe na poesia intensa, indignada, questionadora e profunda de MALU BAUMGARTEN:
FLORESTA
Guardo segredos de raiz e lama
poças d'água, sol no chão
verde e fresco o ar da rama
dentro de vivas folhas o botão.
Boreal, sozinha, levo em mim
o tempo que passou e está por vir,
o círculo que nesta vida assim,
é sempre um eterno repetir.
Aqui na escuridão, sou começar
e adentro meu tempo é espiral, mas
se os pássaros cessam o cantar
não celebram um novo roseiral
Sou a fonte e a curva deste sim
e quando mais não for será o fim.
(p. 19)
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FILOSOFIA
Em modo de fuga sobressalto-me aos sons
da rua. Assustada de carros e pessoas, sigo
o cachorro branco floresta adentro, tenho medo
que esteja perdido e faminto, mas não,
sou eu que estou assombrada.
É a falta de sono digo baixinho,
nada é real, só a química do cérebro.
Dorme, descansa,
apenas os humanos vivem cientes de sua mortalidade,
diz o cara que escreve sobre a felicidade dos gatos
só os humanos precisam de filosofia, ele falou no rádio.
(p. 25)
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LUAR E COISAS QUE VOAM
'O luar e outras coisas,' disse o poeta no palco
Gosto de coisas que voam
Minha filha perguntou:
Se pudesses ser metade bicho, qual seria tua escolha?
Um pássaro, eu disse, e digo
um pássaro para voar no céu,
perto e longe daqui,
um pássaro, por certo, como a lua e coisas que voam
planadores, ultraleves, asas de todo tipo
asas Leonardo e asas Saramago
asas de pardal e asas se albatroz.
No palco, um poeta tem asas
Luar e coisas que voam.
(p. 41)
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VIVA A POESIA DA HORA BRABA
Salve a poesia que transborda da gente na hora braba
quando o ar empestado não alimenta
e a chuva carrega em suas águas
o veneno das horas mal vividas
e nos lava
e nos lava
no lodo sujo da indiferença.
Salve, salve poesia da triste hora
se ao poeta nada resta além da falta
Gritam as multidões aglomeradas sem amor
um grito rouco e orgíaco e sem fundo
não há mais fim
não há mais meio
não há nem havemos de encontrar
o chão que se move sempre mais
inferno daquilo que nos falta
Clamávamos por humanidade
dizíamos humano
humanizávamos
Viva a poesia! Viva a poesia da hora braba!
Que venha nos redimir
que nos salve desta humanidade pobre
desta condição não-animal que nos reduz
que nos torne em lavada chuva, leve ar,
claro bairro, bicho limpo!
(p. 79)
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O NOME DO MEU MEDO
Um lobo me come as entranhas
com dentes pontudos e amarelos
O homem é o lobo do lobo
O nome do meu medo é homem
Pronome pessoal reto, ele
assombra-me as noites quando as dores antigas se
fazem de mortas
e perversas
Se esgueiram na hora mesma em que me toma o sono
em que me cai sobre o peito o livro, e pesados, os olhos
se enchem da areia luminosa
que me faz luz, peixe, estrela, cor
luminária do mar-céu do sonho
Perversas
Com mãos de garra me apertam o coração
que bate desabalado e tenta romper-me a carne
rouba de mim o ar e quer sair boca afora
e bate, bate, bate
O nome do meu medo é ele
homem criatura lúdica
que não ama sem matar
e nada sabe da dor
da outra.
Caçador, caçador, não rias da tua presa
retira-te do meu sonho, leva contigo essas dores
um dia acordas sozinho frente a dentes amarelos
[e hás de saber
o homem é o lobo do lobo e do sabiá e da pomba
das vacas e das cadelas e das fêmeas que dão vida e leite
Olho os olhos do medo, e os meus vão bem abertos
O nome se diz homem.
E não é
que de uns tempos para cá
dei de esperá-lo depois do sonho
com garras macias e presas perfumadas
Tenho a palavra que lhe guardei por uma vida
E sorrio um sorriso de maçã quando a oferto sem filosofia
- O nome do teu medo é mulher.
(pp. 89-90)
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A FOME
A fome não é só de comer
Quando me afogo em lugares-comuns
e imagens açucaradas "da internet"
quando o mundo é meme e é mínimo
e a política, a economia, a sobrevivência,
a fome
querem ser decididas por gentes
que chamam a si mesmas influencers
assim mesmo, na língua do império.
(p. 130)
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ÁGUA
A água há de me lavar em outras areias
serei mineral ou flor, quem
sabe a criatura de sangue quente
volte a incorporar-me,
o que restar de mim, quero dizer
partícula, molécula, célula
poema, ideia, afeto
irresolvido
beijo lançado ao ar.
(p. 147)
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PONTO DE VISTA
Estou bem, exceto
por esta sensação de estranhamento
talvez sintas o mesmo?
Sou habitada por uma criatura solitária,
uma cachorra fugitiva que não pode
encontrar o caminho de casa
ou não quer, em qualquer caso, impaciente,
irritada pela falta de sono
Nesta solidão, sofro a ausência dos outros
e ainda assim nada quero ter a ver com eles
Me falta algo que não sei,
quase não durmo
Deitei-me na poesia
Vagueio e tiro fotografias
Nas ruas a morte é invisível,
de poeira, carros e vírus,
de homens violentos, corpos consumistas,
mas sobretudo de corpos indiferentes.
Estou bem, a não ser pelo tamanho da ausência
tu a sentes também?
viajo para dentro, sei
quando chegar minha hora
De uma coisa estarei certa
não fui indiferente.
(p. 177)
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AUTOBIOGRAFIA DO FUTURO
Caiu a árvore. Além do cordão de isola-
mento, sob a ponte logo ali,
sombras se esgueiram por trás de formosa
coluna de concreto - vi?
Braços abertos no chão
de gelo, ela suplica, não de todo morta, abatida
pelo vento, raízes expostas ao ar frio,
o sexo da Terra aberto e triste.
Um sabiá graudão saltita na grama.
Um corvo alça voo do canteiro de obras,
Este esquilo tão faminto nem foge, rói
indiferente, a noz; o que sonham as tangerinas? Ninhos
de mamíferos, para cada árvore três, eu salvo coisas
e pássaros também,
pombas não são ratos; o vizinho envenenou
meu cão, agonia viva tantos anos
passados; ratos não odeio,
sou de salvar, não de matar.
Mãe, é preciso salvar o mundo?
Pai, o mundo o que é?
Na escola no sul do mundo, pensava que sabia do inverno.
As mãos doem dói o rosto desculpas para não sair, e rua!
Na rua, o corpo se move, o sangue aquece,
[floresce a mente. Alegria.
Somos: animal que reage a combinações
[químicas no cérebro.
Superior a?
Meu nobre gato no colo. Magro, olhinhos
[semicerrados, ele me ama.
Só os gatos possuem realeza.
Vagueio. Coleciono coisas-emoções
[as mais pequenas, busco
traduzir definir transcrever pintar fotografar cada qual.
[Quando eu me for,
levo nada nem ninguém. Deixo de mim
[uma sombra, um perfume,
a curva de um sorriso. Já na saída, inicio a contar
mais uma história, como Krenak ou Sherazade.
Adio. Parto, mas com preguiça.
(pp. 183-184)
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• Todos os poemas aqui publicados foram transcritos do livro A poesia da hora braba, Poetry of the wild hour (poesia, livro bilingue, Porto Alegre/RS: Bestiário Editora/Selo Invencionática/2023):
(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.
MALU BAUMGARTEN é natural de Porto Alegre/RS e desde 1997 vive em Toronto, no Canadá. É jornalista, escritora, tradutora e fotógrafa, especializada em poesia. Formada em inglês e literatura pela York University (Toronto). É uma das criadoras do do site 'Nós e Outras' (noseoutras.com), que promove a escrita e a arte da mulher. Faz parte dos coletivos 'Enluaradas' e 'Mulherio das Letras'.
Participou em diversas coletâneas de prosa e poesia no Brasil. Publicou traduções de poetas anglófonas na 'Revista Sepé', de Porto Alegre/RS. Uma mostra de seu trabalho pode ser visualizada nos sites da web noseoutras.com e urubuquaqua.com.
Livro publicado: A poesia da hora braba, Poetry of the wild hour (poesia, livro bilingue, Porto Alegre/RS: Bestiário Editora, Selo Invencionática, 2023 (no Brasil o livro pode ser obtido através do site da Bestiário Editora, no Canadá, através da York University Bookstore, de Toronto).
Participação em antologias e coletâneas: Uma ciranda de deusas (Enluaradas Selo Editorial, 2021); O mundo ao redor (organizadora e participante, Porto Alegre/RS: Bestiário Editora, 2021); Do ventre à vida (primeiro tomo das bruxas, Enluaradas Selo Editorial, 2022); Solilóquios (Belo Horizonte/MG: Venas Abiertas, 2022); Arca de esconderijos (Porto Alegre/RS: Território das Artes, 2023); Publicar é um direito (Curitiba/PR: TAUP - Toma Aí Um Poema, 2023).
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