A Poesia de Claudia Manzolillo
lanço cartas ao mar:
vagas memórias
manuscritos
sem destino
testemunham
o tempo que me coube
lanço-me ao mar:
difícil tarefa de lutar
contra a maré
águas salgam-me
e deságuo
lanço ao mar letras e alma:
adenso as águas oceânicas
berço do tanto que fui e sou
lanço ao mar minha herança:
um nada
esse deus que mora em mim
fugidia esperança de eternidade
lanço enfim minha carta de navegação:
bússola inexata guiou-me até aqui
praia bravia
praia deserta
praia serena
praias sem fim
me acobertam
lanço-me assim ao crepúsculo de mim
Pele é mapa:
inscrevem-se
amores
mágoas
linhas
horizontes
abismos
Pele é retrato:
revelam-se
calendários
festas
perdas
mares
securas
Pele é deserto:
escondem-se
oásis
miragens
desafios
assombros
Pele é rota:
escrevem-se
alguns poemas
cartas de amor
de despedida
enquanto
dias e noites
TRANS
Eis meu corpo
nele cabem sonhos
disfarço a alma
que nele mora
construí muros:
muralhas entre
o todo que sou
e a parte submersa
revolto é o mar
que transbordo
e engulo
a seco
tento mostrar
a face absoluta
que escondo
eu que me sei
adenso esse eu
que sou toda
entre um mergulho
e outro
renovo a flor
desfolho a casca
afago a pétala
e sou inteira
a alma que me habita
o corpo que me cabe
e em que não caibo:
então me espraio
eu que me sei
MUSA
Diz-me quem és, ó musa silente,
que te encobres com teu próprio corpo-concha,
tua morada-casulo, teu inexpugnável castelo,
inóspito à luz, alheio ao que é vivo e circundante.
És lassidão e interioridade,
musa do não, habitas os vazios e o oco,
sem ecos e promessas de salvação dos labirintos,
sem fios de Ariadne ou migalhas de pão.
Musa não mais, apenas um espectro do que fora
antes do espanto, antes da visita de Pã,
louco fazedor de presas ao susto primordial.
Pudesse desvendaria teu véu e teus olhos,
e assim eros pulsaria na fina fibra do teu ser.
A cada ano, era necessário limpar as gavetas:
munida de todo ânimo que ainda lhe restava
juntava os documentos doloridos num canto
jurava pela milésima vez que os queimaria
afinal, fazem parte do arquivo morto
notas fiscais, inventários,
promessas de compra e venda
tudo ali juntando mofo
a casa devastada
as receitas da mãe morta
exames que de nada mais adiantavam
um par de óculos sem lentes
uma caneta tinteiro sem tampa –
teria assinado algum daqueles papéis
de menos valia?
ó futuro que destróis os materiais valores
no fundo de gavetas imemoriais!
ó leveza desfibrar um a um esses papéis sem cor
sem dono sem destinação!
são náufragos a esperar submergir
no mar do esquecimento
despir as pesadas gavetas
trazer-lhes a novidade do vazio
a esperar a carta manuscrita
letra redonda infantil
a dizer te amo
a renovar os contratos de felicidade
assinados consigo mesmo.
Eis aí a proposta de ano novo.
Claudia Manzolillo, graduada em Letras Vernáculas e Mestra em Literatura Brasileira, pela UFRJ, publicou A dona das Palavras, livro de contos, Editora Penalux, em 2015, premiado no Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira de Escritores – UBE-RJ, em 2016. Participou do Concurso de Haicai de Toledo, em 2017, e do Prêmio Lila Ripoll de Poesia 2017, sendo premiada em ambos. Integra diversas antologias e revistas eletrônicas. Destaca-se como uma das escritoras contemporâneas em A mulher na literatura latino-americana, 2018, EDUFPI
Ilustrações: desenhos de W Patrick
@patrickdesenhoetattoo
Sou fã! ♥️
ResponderExcluirTambém me identifiquei entre suas palavras. 🌼🌿
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