A Poesia Refinada de Águeda Magalhães


Redenção
Recostei-me
preguiçosamente
na luz da manhã.
Filetes de sol
aqueciam o não
que se antecipou
-vida inteira-
ao riso contido do sim.

Desvesti-me do medo
vesti-me ousadia:
Vendaval
varri fantasmas,
Voragem
desfolhei anseios.

No ar
pintei
a dança das folhas
exímias acrobatas
a exibirem
em frenéticos volteios
o último balé do outono
revoada de cores
que se dispersa
no abismo de todos os ventos.

Alimentei flores famintas
aves desgarradas.
Em catres empoeirados
encontrei
gritos silentes:
dormiam
entediados
dos dias sem cânticos;
queriam entoar tempestades.
Acordei-os
um a um.
Ouvi os ecos
de um imenso riso triste
a reverberar desencantos.

Desenfileirei
exércitos de palavras reprimidas
paralisadas
em filas indianas.
Quebrei a vitrine
libertei a pálida manequim
há tanto tempo
imóvel...
Enxuguei sua face branca
sulcada
por lágrimas de cera.
Acendi seus olhos vítreos,
com lâmpadas de anil
pintei sua boca de vermelho-carmim.
E ela sorriu!

Fiz- me nuvem.
Derramei-me chuva.
Torrencialmente
chovi:
molhei a terra árida
que esperava
apenas
o beijo molhado
das águas de Maio.
Eclodi verde
embrião da vida
a brotar
timidamente
dos entulhos do ontem.

Nada mais importa
senão o meu próprio encontro...
Em longa e dolorosa procura
fiz-me resgate:
perdoei-me!
hoje
sou
Redenção.


Ecos

Porque é tempo de neblina
não se pode enxergar

o calor vermelho dos gerânios

cingindo delicadamente
as escarpas das horas breves
imprevisíveis
mas irresistivelmente
sedutoras.

Porque é tempo de véus cerrados
janelas trancadas
corredores brancos
macas que transitam submissas
não se pode ouvir a força de todos os ventos
de todas as chuvas
que
insistem em lavar
os ecos dolorosos que tingiram
o corpo ermo
e a alma perplexa.

Porque é tempo de silêncio
de frio intenso
tetos com círculos de luminosidade excessiva,
que chegam a devassar as entranhas,
a consciência
submerge no silêncio inóspito do desconhecido.
A mente entorpecida
acomoda-se no vazio.
Após prolongada pausa
retorna
sedenta
por desfolhar um tênue raio de sol
que atravessa a palidez do frio
num gesto tímido de boas vindas.

Porque é tempo de fé
a esperança esboça-se
na terra nua
flores (ainda que frágeis)
pontilham aqui e ali
a aridez do medo
que escurece o silêncio.
Volto a habitar-me.
Recolho o pranto.
É hora do riso.

Anseio por átrios banhados de verão e de luz .
Quero embrenhar-me na tessitura delicada da vida:
desfolhar os fios tênues desse novelo imprevisível
fascinante
tecer uma manta quente para os dias de inverno
um alforje seguro para os dias de abismo.



Anjo caído
Provisoriamente
as asas gastas
interrompem

as escalas de voo.
O caminho estéril
engolido pelas sombras
dificulta os planos de fuga.

Saudosos do sol
os girassóis
não costuram de amarelo
os muros sombrios.
Entorpecidos
refugiam seus corpos frágeis
nas vigílias das nuvens
infladas de jasmins.

As valquírias trêmulas
mergulhadas no silêncio branco
interrompem suas danças.
Dolentes
sobrevoam
os exílios das lembranças
buscam
farrapos do arrebol.
É a hora em que a águia
cansada mas imponente
arrisca um voo lento
e desce das montanhas
em busca das doçuras da tarde.

À meia-luz de todas as saudades
acolhe o pouso.
Corpo frágil
olhos de mágoa
mira-se na pequena poça:
-Que vento insensato
roubou minha imagem?
nostálgica
descobre-se efêmera
anjo caído
sob o pulsar severo do tempo
que desfolha a face
inviabiliza o voo
e não mais autoriza
asas ruflando nas alturas
rápidas como o vento
a beber a imensidão do azul.


A flor refeita

Meu Senhor,
ando exilada de mim.
soltei a minha mão...

perdi-me em terras estranhas.
Hóspede provisória do ermo
busco
avidamente
aquele cantinho de sol
antiga pátria
da minha alma desolada.

Sem agasalhos
sinto frio.
Esqueci das cobertas
que ora envolvem borboletas
órfãs do casulo.
Como eu
elas sofrem com os vendavais
que despedaçam
as suas asas frágeis
epiderme dos poemas
que não ousaram cantar
a saudade que vaza dos olhos
luz cambiante
na face opaca.

Meu Senhor,
sou a sombra rota
do que fui:
um rosto desbotado
que não se reconhece no lago dos Narcisos.
Eu era muitas...
Hoje,
única,
sou a que procura
uma réstia de verão
uma nesga de céu azul
uma xícara de café quente
a beleza dos pardais conversando nos fios de alta tensão...

Cansada, Senhor,
Entre montanhas geladas
deito todos os fardos.
Na névoa espessa
um brilho macio
me chama:
É a luz que emana de Ti
e desenha em mim
um peito feito de sol
que fecha a ferida
e refaz a flor.


Horas insones
Íngreme
é a estrada inóspita
que desbravo

entre pedras agudas
e incertezas ácidas;
ensaio os passos
medrosos
da frágil equilibrista
que tenta não resvalar
no abismo da noite espessa
que agora deu para esquecer
de acender as estrelas.

Íngreme
é o silêncio noturno
da cidade adormecida;
ruas nuas
esquinas vazias
chuva fina.
No casulo
a minha travessia insone;
a quietude compassiva
é maculada apenas
pelo tique-taque do relógio
que regurgita as horas.
E a noite desliza
madrugada adentro...
Adormece todas as coisas
esquece de mim.

Luzes apagadas.
Fecho os livros
busco o ópio da paz
que me traria o sono
mas ele não vem;
saio das cobertas
piso leve
não quero acordar ninguém.
Vou mil vezes à janela
conferir a paisagem.
A pracinha muda
letárgica
é o cartão postal da solidão:
balanços inertes
bancos vazios
postes sonolentos
-tontos com os giros das mariposas
em volta da luz.
Ao longe
o latido triste de um cão
-talvez outro insone-
ecoa a melancolia das horas mortas...
sensação estranha de despertencimento.

Íngreme
é a impotência
diante da ansiedade
impositiva
devastadora.
Intenso
é o meu desejo de subjugar
aflições
alforriar temores
abrigar-me no regaço do sono
e naturalmente
dormir
dormir...
E ao acordar
perceber:
foi apenas um sonho.
A noite voltou
a acender as estrelas.


Desenhos que ilustram a publicação por Wellington Patrick (WP)
@patrickdesenhoetattoo


Águeda Magalhães nasceu em Pernambuco e reside em João Pessoa - PB. Licenciada em Letras pela UFPB, trabalhou como professora de Literatura brasileira e Língua portuguesa. Não costumava publicar seus escritos. Incentivada por amigas e familiares, passou a publicar nas mídias sociais e com a excelente repercussão da sua poesia, decidiu lançar seu primeiro livro em 2019, Alquimia do Voo.

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