Em um dia de chuva - Chris Herrmann



Crônicas que as lembranças me embrulham de presente - 02
por Chris Herrmann

Rio de Janeiro. Anos oitenta. Tinha acabado de completar 19 anos. Trabalhava como secretária-datilógrafa e teletipista (os “dinossáuricos” como eu, entenderão) e era nova naquela empresa. Com poucas semanas de trabalho, fui transferida para outro setor, onde substituiria uma secretária que entrou de férias. A chefe era uma mulher sisuda na casa dos trinta, que eu só conhecia de vista. No novo setor, os comentários corriam à boca pequena que a chefe era “um terror”. Tímida e observadora que eu era, vi que apesar do que falavam, ela demonstrava ser muito competente. Com receio de desagradar a “terrorista”, eu me concentrei ainda mais no meu trabalho  para não dar mancada logo nos primeiros dias e parecia dar certo. Ela chamava à atenção dos colegas por qualquer displicência. Eu ainda não tinha tido o “privilégio”, mas sabia que era apenas uma questão de tempo, hehe.



Foto: Maria Balé

No final da tarde de uma sexta-feira da minha segunda semana de trabalho naquele setor, o tempo fechou e parecia cair um dilúvio lá fora. Para minha surpresa, no final do expediente, a “dona terrorista” ofereceu carona para mim e outros dois funcionários que não tinham carro e moravam na Tijuca. Segundo ela, “seria caminho” da casa dela. Então aceitamos. A umas três quadras da minha casa, ela parou o carro de repente e disse que eu podia fazer o restante do percurso à pé, já que ela teria que dobrar à direita para deixar os outros em casa. Eu fiquei sem graça de falar alguma coisa. Agradeci e saí do carro naquele dilúvio, sem guarda-chuva. Cheguei em casa completamente encharcada e triste. 

No dia seguinte, ela me chamou para almoçar, coisa que só fazia com outros chefes. Desculpou-se comigo. Disse que depois refletiu muito e percebeu que foi cruel, pois economizar cinco minutos da viagem de carro, não justificava me largar naquela chuvarada. Disse também que o que mais a fez refletir, foi que eu não retruquei e ainda agradeci. „Por que você não me mandou à merda naquela hora?“, perguntou. Eu ri e respondi que pensar eu até pensei, mas que não me cabia julgá-la, já que nos conhecíamos tão pouco. Só fiquei triste. „Além do mais, como ficaria o clima de trabalho no dia seguinte, já que você é minha chefe e trabalhamos juntas?“, completei.

Resumo da ópera diluviana: ficamos amigas. Mesmo depois de encerrado o meu tempo de substituta e retornado ao outro setor, nossa amizade continuou e cresceu. Semanas depois, meu pai faleceu e ela foi uma das pessoas que mais me deu apoio naqueles dias tenebrosos. Lembro que no dia „D“ ela esteve na minha casa e trouxe na bolsa comprimidos de calmante para que eu conseguisse dormir a primeira noite. Penso que fiz bem em não tê-la mandado à merda naquele dia chuvoso. Talvez tivesse perdido a oportunidade de conhecer de perto uma pessoa incrível. Uma amiga verdadeira e solidária. Seu nome era Betina. Bendita chuva!

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