Uma prosa poética de Nic Cardeal
Os olhos chuvosos de Deus
Eu imaginava que águas caíssem dos céus porque deus também sentia dores intensas e precisava chorar algumas vezes. Às vezes, muitas vezes. Então naqueles dias tão imensamente aguados eu chorava escondida - junto com deus - acreditando que assim poderia aliviar sua dor.
Ele, por certo, nem fazia ideia que uma de suas milhares de criaturas, tão ínfima como um grão de areia perdido no seu universo sem fim, chorava com ele, por ele... Eu, por outro lado, desse lado aqui de baixo, sentia-me útil, num quase mútuo sentimento de compaixão e amor, acreditando piamente na utilidade do meu gesto.
Assim segui acreditando por anos a fio, toda vez que chuvas a rodo rolavam lá do alto até cá embaixo. No correr do tempo sempre me perguntava a razão de tanto sofrimento de deus por seus humanos... porque as águas continuavam, ora leves, ora pesadas, nervosas, desesperadas...
Perdi a conta por quanto tempo segui acreditando no sofrimento intenso de deus por seus mínimos humanos. Creio que chorei inúmeras vezes por essa razão, em compaixão à divindade entristecida. Até que, já um pouquinho crescida, desaguei pela primeira vez - sozinha - sem nenhuma lágrima solidária daquele meu deus que chorava aos turbilhões. Naquele dia aprendi a lição, não por deus, mas por minha própria solidão a fazer desaguar o coração - foi meu primeiro sintoma de amor. A lição? Em chuvas internas de amor nem deus se atreve a querer entender a linguagem inútil das lágrimas.
Hoje chove muito. O dia inteiro. Sempre que chove lembro dessa minha imaginação de outrora - quase criança - e posso ver aquele meu deus imaginário todo encharcado, espiando d'alguma janela do céu, pra ver se estendo meus olhos molhados de tanto enxugar sua dor.
Nic Cardeal, em 02.02.2020
(ilustração de Márcia Cardeal, @marciacardealestudio)
Delícia de ler! A tristeza da tua Arte me alegou a tarde! beijos
ResponderExcluirObrigada, Ivy Menon! Bjs.
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