RITUAIS - Um conto de Sílvia Palaia

Rituais
por Silvia Palaia

Apagamos a luz, só o abajur permanece aceso, desenhando o teto junto com os risquinhos da veneziana. Respiro aliviada. Estou feliz. Blues tocando baixinho, seus braços em volta da minha cintura, nossas pernas tão enroladas, que se confundem. Sua respiração leve e às vezes um sussurro no meu ouvido: “– Já disse que te amo?” “– Nunca”. E começávamos tudo de novo, e de novo, e de novo. Na madrugada quando um sonho me acordava, lá estava você. Roubava um beijo, falava ao seu ouvido o quanto o queria. Você sorria e levava suas mãos aos meus seios. Eu gostava. No domingo saíamos de mãos dadas pelo mundo. O mundo era ali mesmo, virando à esquerda. Preparávamos o banquete, servido com mel, néctares, hortelã, e uma rosa à mesa. Só nós dois. Nus. Nós dois, nossos corpos, nossa alegria e os mais requintados beijos. Não fazíamos planos, nem embalávamos sonhos ou conquistas. Apenas ficávamos ali. Nós dois, recriando nossa história. Da última vez sussurrei no seu ouvido. Senti que você apertou minha mão. De leve. E soltou. Aos domingos mantenho o ritual de dar a volta ao mundo, ali mesmo, virando à esquerda. Coloco minha roupa de domingo, calço o tênis e uma camiseta confortável. O porteiro me diz bom dia. Não pergunta mais por você. Caminho até a Banca de Jornal e compro os dois: o seu e o meu. Quem sabe não o encontro no meio das notícias. Atravesso a rua e compro aveia. Mamão. Quem sabe você não chega. Quem sabe. Volto correndo pra casa, refazendo nossos antigos passos. Abro a porta. Paro de respirar por um segundo. Parece que ouvi um ruído vindo do quarto. O vento às vezes assobia. Sinto frio. Guardo o pacote de aveia, junto com os outros dos outros domingos. Substituo o mamão da fruteira e espalho os dois jornais na cama. Todo domingo. Escolho o filme. Na bilheteria compro dois ingressos. Tomo um café e volto pra casa, repetindo nossos passos. Ao porteiro, dou boa noite e abaixo os olhos. Abro a porta. Escuto o vento. No quarto, na gaveta do velho criado-mudo guardo os ingressos do cinema. Junto com os outros, dos outros domingos. Todos os domingos. Envelheço.

Ilustração, desenho de W. Patrick @patrickdesenhoetattoo




Meu nome é Sílvia Palaia. Nasci em São Paulo, capital num domingo ensolarado de novembro. Pra ser mais precisa dois dias após o assassinato do presidente Kennedy, ou seja 24/11/1963. Sou a terceira filha dos quatro filhos de Elza e Linneu. Socióloga e historiadora por formação, mas meu ofício é a sala de aula. Me sinto feliz nesse lugar. Gosto de escrever. É o que faz sentido pra mim. Desde que me conheço por gente crio histórias imagino personagens e fantasio o dia a dia das pessoas no metrô, nas ruas, nos bares. Sou romântica para as histórias de amor, mas não para o amor romântico. Vivi muitas delas. E quero mais.Também sou mãe. Do Pedro e do André e é aqui que o amor é a melhor realidade.

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