Fotografia por Maria Balé
Um Abraço Preso na
Garganta
O barulho da chuva que cai no metal
da janela do quarto se antecipa ao despertador. Ele abre os olhos. Lentamente.
Olha para o relógio. É cedo. Tem um tempo, ainda. Cede aos apelos das pálpebras
superiores que, sem resistência, voltam ao estágio anterior. A noite, insone,
passara arrastada.
Sem saber ao certo se é cansaço ou
melancolia a causa da impenetrável espessura das horas, ele decide levantar-se.
Permanece mais um pouco sentado na ponta da cama e, na tentativa de aliviar o
peito comprimido pela angústia, respira fundo. Incontáveis vezes. Técnica de
controle de estresse que aprendera num estágio nas Forças Armadas do Canadá,
nos primórdios da sua juventude.
Dispensa o desjejum e prepara-se para
a viagem, há semanas, planejada. Às sete, em ponto, lá está ele, Treserres,
apelido de Radamés Rodrigues Rangel, o motorista da empresa de
transporte contratada.
Viajar, desde sempre, é uma de suas
paixões, não importando se a trabalho, para um destino turístico badalado ou um
lugar exótico como São Tomé das Letras. Ou dos Números, talvez. No
entanto, essa partida suprime a excitação e a alegria de tantas outras.
Os respingos da garoa rala de final
de outono no vidro da janela do carro remetem à tela vazada que cobria o berço
das crianças. Nenhuma conversa. Sequer uma palavra. O pensamento, deslocado
daquela data, vai e vem, na intermitência das lembranças daquele menino. De
dois, o filho preferido. Seria por ser o mais inquieto e arredio? Alto, forte,
grandes olhos azuis como faróis no anguloso rosto selvagem e bronzeado, sua
imagem insiste em vestir-se com o uniforme militar camuflado. É assim que
aparece na foto ampliada, em destaque na parede do quarto dos garotos,
fantasiado de Rambo, nas recorrentes brincadeiras de moleque.
Elias, nome escolhido em reverência
ao personagem de Willem Dafoe, no filme 'Platoon', o clássico drama de guerra
americano e o filme da vida desse pai, ex-militar e ex-combatente. Não raro,
num quê de orgulho pelo heroísmo alheio, refere-se ao filho como 'Sargento
Elias', uma alusão ao seu desejo de que seu rebento tivesse a força de caráter
do aguerrido soldado de Oliver Stone.
Zeloso, cuidou do futuro dos filhos
como se cuida de uma planta medicinal que salvaria vidas, nos longos períodos
de treinamentos na mata.
Os matizes alaranjados da metrópole
poluída dão conta que, enfim, chegaram.
Como a noite anterior, a viagem fora
viscosa. Com as mãos, ele tenta desamassar a roupa, calça jeans azul-claro e a
elegante camisa de tricoline branca. Alonga as pernas e o dorso, respira fundo,
incontáveis vezes, para se recompor e vencer os seis degraus da pequena escada.
A passos largos, percorre a estreita
alameda externa e adentra à pequena sala de espera. Estar ali, tão perto,
alivia a ansiedade pela longa espera. Nem cansaço nem melancolia. Em minutos,
seus braços prenhes de abraços, encontrarão o filho. Sem pressa, acalentará seu
Rambo-mirim. Seu adorado 'Sargento Elias'. As medalhas, as condecorações
e honrarias se esvanecem frente à felicidade daquele momento.
O agente de plantão convoca a visita
para Elias de Albuquerque. Num salto, o pai posta-se diante da grande porta na
parede do sorumbático corredor que leva ao pavilhão contíguo ao prédio da
frente, onde o silêncio só é interrompido pelo eco da solidão nas vigas das
grades. Minuciosamente revistado, encaminha-se para o ansiado encontro
com o filho que, preso em flagrante, aguarda pelo julgamento por tráfico
de drogas nas dependências da estrelada universidade da qual, bom
aluno, fora desligado do curso de Engenharia Naval. É a primeira
visita, desde a sua prisão, há pouco menos de dois meses.
Inocente? Culpado? Se inocente, ele
precisa de mim. Se culpado, precisa mais, muito mais, pensa o pai, ao som
metálico dos seus passos apressados.
E lá está ele, o filho, do outro lado da masmorra. Tudo o que pode ser
visto, por um estreito vão que corta a parede, é o olhar fosco de turquesa
bruta. Nada além. Nenhum contato físico. Nenhuma conversa. Sequer uma palavra.
Apenas um abraço preso na garganta.
Maria Balé é
pós-graduada em Comunicação Corporativa pela PUC-São Paulo. Produtora de
textos, cronista, contista e fotógrafa. Tem curso de Extensão Universitária na
disciplina Diálogos entre Filosofia, Cinema e Humanidades, PUC-São Paulo e de
Roteiro de Curta Metragem pelo Espaço Unibanco de Cinema, curadoria do
roteirista Di Moretti.
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Maravilhoso!
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