Um Conto Incrível de Virgínia Finzetto
Aquarela de Luciane Valença |
AS ESCAMAS DO MEU PEIXES BRILHAM NO MANTO DA SUA VIRGEM
I - O SONHO
[fique
atenta à primeira mensagem de hoje e o que deseja será seu]
Antes que a lembrança se apagasse, Amine
pegou a caneta e anotou no bloquinho, que costumava deixar sobre o criado-mudo,
a frase do estranho sonho. O celular marcava 4 horas da manhã. Levantou, foi
até a cozinha, pegou um copo de água e voltou para o quarto. Leu de novo o que
acabara de escrever.
“No mínimo, meus neurônios cruzaram minhas
recentes leituras sobre esoterismo, astrologia e ufos e chacoalharam tudo...”,
pensou desconfiada se aquilo poderia ser mesmo um recado.
Essa mania adquirida de que podemos dar conta
de nossas vidas até vir uma lua cheia e nos derrubar da cama com imprevistos de
tirar o sono, a falsa sensação da ocorrência de eventos lineares, as certezas
que se suicidam a cada segundo, o sossego que não dura... Vida, tempo, relógio,
inseto, uma cartilha de palavras de A a Z com imagens grudadas no papel, enquanto
esse alguém, que foi batizado com um nome e se torna a primeira pessoa, respira
fundo de um golpe de ar.
Essa era a Amine,
que, sem conseguir dormir, meditava e rabiscava em seu bloquinho.
II –
OS DESDOBRAMENTOS
Enquanto
percorria os labirintos da memória, desperta e sem sono, Amine ouviu a campainha. Olhou de novo no celular: 8 horas! Espiou
pela janela da sala e lá estava um rapaz segurando o capacete em uma das mãos e
na outra, um embrulho. Voltou ao quarto, colocou uma roupa e foi até o portão.
—Por favor,
senhora, assine aqui... – entregando-lhe um protocolo.
Ela conferiu seu
endereço, assinou, pegou o pacote retangular e virou-o rapidamente de um lado e
do outro, enquanto o motoboy colocou o capacete e subiu em sua moto que
permaneceu ligada. Não havia remetente, que estranho. Desembrulhou-o e viu um
pôster. Nele apenas um número em branco, uma arte toda desenhada sobre papel
fosco negro encorpado. Olhou o verso e nada. Quando resolveu tirar sua dúvida
com o rapaz, ele já havia arrancado com a moto e não a ouviu.
Que coisa mais
surreal, pensou. Voltou a olhar o embrulho por dentro para tentar encontrar
algum bilhete, um complemento do objeto. Na embalagem apenas as inicias A e M
de seu nome, Amine Medina. Seria teaser
de lançamento de um novo produto no mercado?
Na tentativa de
descobrir alguma pista, foi ao computador e digitou o número no campo de busca.
Nenhuma das imagens que apareciam mostraram ser compatíveis com a que recebera:
“Absolut Limited Editon 72, imported vodka; California 72; Conferência 72
horas... 72 nomes de Deus...”, foi declamando em voz alta enquanto o mouse rolava
as páginas da internet.
Não, não havia
nada semelhante à propaganda que recebera, mas resolveu clicar no link ‘72
nomes de Deus’, porque lhe agradara aquela chamada em hebraico e em especial
o nome םדּם (72 - Mem Vav Mem – Purificação Espiritual):
“Ao meditar sobre essas letras, vá ao botão de
‘voltar’ e ‘apagar’ de sua tela espiritual atual e purifique sua vida,
corrigindo-a das transgressões cometidas no passado...”.
Uau! Até que essa
frase fazia sentido para explicar suas anotações sobre o sonho, mas não o
suficiente para fazê-la parar aí. Foi então que lhe veio de súbito que 72
poderia significar o número total de anos de sua vida.
“Se essa fora a
resposta, ainda me restam 12 anos de tempo neste planeta! O que são 12 anos
comparados aos 60 já vividos?”.
— É melhor me
apressar e não desperdiçar nem mais um segundo da minha vida – debochou.
Tomou um banho
quente, despejou no corpo a mistura de água quente com sal grosso como de
costume e voltou ao computador com a intenção de começar a trabalhar.
III –
AS INTERPRETAÇÕES
Sobre a
escrivaninha, o pôster com o enigmático número 72.
No bloquinho,
anotações, rabiscos e suspeitas sobre o que é prazo, o significado de um
Saturno implacável a lhe cobrar respeito e sua urgência extrema em se conciliar
com o tempo. “Afinal, que susto é esse que todos um dia acabam levando? Por que
a falta de lembrança do antes e o desconhecimento do depois, marcando um ínfimo
trecho de uma linha infinita a qual chamamos de vida – até a morte nos alcançar
sem hora marcada – nos enche de tanta importância?”.
“Restam-me apenas
12 anos...”, refletiu, enquanto olhava no espelho seu rosto quase sem nenhum
traço da juventude que ela teimosamente insistia em cultivar. Seus cabelos,
mais brancos do que grisalhos, disfarçados sob algumas camadas de tinta, apenas
fingiam adiar o inevitável.
12 signos... 12 apóstolos...
12 meses... 12 casas...
12 trabalhos de Hércules... 12 tribos de Israel, 12 filhos de Jacob, 12
aparições do Cristo ressuscitado... 12 portas de Jerusalém protegidas por 12
anjos... 12 vezes 12 mil homens serão eleitos... 12 notas musicais no sistema
dodecafônico... 12 divisões na esfera do relógio!
Nenhuma vida única
basta a um ego ávido. Se conseguisse resolver boa parte dessa equação, ela poderia
ir direto à partitura, departure,
partida, e escapar inteira, dentro do possível, até a chegada da hora H.
Por onde começar?
A primeira coisa que lhe ocorreu foi resgatar seu livro sobre os 12 episódios da
saga mítica greco-romana para outra leitura atenta às entrelinhas. Mas nem bem
leu o primeiro parágrafo e voltou a divagar: “As palavras, assim como as cores,
os aromas, os sabores, todos os órgãos dos sentidos visíveis e invisíveis
transformam-se em pontes que nos conectam com o que há de mais profundo no
passado. Os episódios que emergem adquirem status de telas prontas para ganhar
novas tintas, acrescentado a essas outras texturas de interpretações ou
solventes em porções suficientes, para que o que foi capturado em um tempo
remoto torne-se um nada e saia desse imenso reservatório como um pássaro
liberto de amarras a voar para novos planos sem voltar a incomodar.
Palimpsestos livres para seguirem outros rumos.”.
— Chega de
caraminholas! – pensou em voz alta.
Largou o livro e foi para a cozinha preparar seu almoço.
IV –
A IMPLACÁVEL REALIDADE
De novo, a
campainha. Pela janela reconheceu o mesmo portador, agora acompanhado por um
homem meio grisalho.
— Boa tarde,
senhora! – grita o da moto.
Amine pediu um
minuto, para se livrar da faca e do cheiro de alho e cebola nas mãos, antes de
ir atendê-los.
— Muito prazer,
André Mendonça. – disse o homem grisalho, estendendo-lhe cordialmente a mão.
Sou proprietário da AM Comunicações, que fica no centro da cidade. Ele é novo
na agência, disse apontando para o rapaz da moto, e acabou errando o endereço. Só
aqui em Turvinho há ruas com mesmos nomes e números. – balançou a cabeça em
sinal de reprovação. Esse absurdo gerou confusão...
— Ah, não foi a
primeira vez que isso aconteceu. Bem que eu desconfiei quando vi o conteúdo do
envelope, mas já era tarde quando tentei chamá-lo de volta para perguntar. Meu
nome é Amine Medina e, como li minhas inicias no envelope, achei que fosse para
mim. – riu com simpatia e comentou sobre as coincidências.
— Se não fosse a
cliente ligar perguntando sobre o material que deveria aprovar, eu também não
saberia, pois o outro motoboy já conhecia o endereço, então nem me preocupei.
— Vocês aceitam
água, café?
— Obrigado, mas estamos
atrasados...
V –
AFINAL DE CONTAS...
Na eternidade
daquele minuto em que andou até o escritório para pegar a correspondência
entregue por engano, todas as cenas das quimeras da qual sua alma fatalmente fora
acometida apresentaram-se como um vídeo e fizeram-na rir de vergonha. Em breve,
o bendito pôster, que poderia resolver o enigma de sua vida, estaria nas mãos da
verdadeira destinatária.
— Aqui está, mas
posso matar minha curiosidade? O que significa esse número?
— É a arte que
compõe a logomarca do endereço da escola de astrologia que será inaugurada ao
lado da biblioteca, na praça da igreja. Conhece? Apareça lá na quinta-feira, às
19 horas. Vai ter um coquetel e uma apresentação dos módulos de cada curso. O
número, agora, você já sabe!
— Obrigada pelo
convite, interesso-me muito pelo tema. Sou pisciana! – mal conseguindo
disfarçar o entusiasmo.
— Ah, meu oposto
complementar. Sou virginiano! -
despediu-se sorrindo.
Ainda sob o impacto
dos acontecimentos, Amine acompanhou com os olhos o movimento da moto até o
final da rua. Depois entrou devagar e foi anotar aquele desfecho em seu
bloquinho, antes que despertasse do novo sonho que já se insinuava crescer em
sua imaginação sem controle.
Virginia Finzetto
Virginia Finzetto é paulistana. Jornalista e editora, formada em comunicação
social pela Faculdade Cásper Líbero e em história e letras pela USP -
Universidade de São Paulo. Desde 2004, seus poemas são encontrados em várias
edições da agenda Livro da Tribo;
nas edições da revista Scenarium Plural;
na coletânea do 16° Concurso de Poesias
da Universidade Federal de São João Del-Rei/MG, de 2016; na antologia CONEXÕES ATLÂNTICAS, da In-Finita, lançada em Lisboa em 2018; na
revista literária O CASULO e na antologia Casa do Desejo, da editora Patuá, de 2017 e 2018. Contos, crônicas e poemas também estão na GERMINA - revista de literatura & arte; na Folhinha Poética, e nas coletâneas MULHERIO DAS LETRAS NA PROSA, de 2017 e 2018. Seu primeiro livro de poemas -
VI E/OU VI que o vento é aqui - foi publicado pela Scenarium Plural, em
2017. Também é curadora na revista literária POESIA AVULSA.
Outras prosas e poesias em
seu blog pessoal: http://vieouvirginia.blogspot.com.br/
Obrigada, Lia e Chris. Muito feliz aqui. beijos
ResponderExcluirNós agradecemos a sua belíssima participação, Virgínia! 🌷🌿
ExcluirDeu vontade de ler umas setenta e duas vezes, pelo menos! uuuaaauuu
ResponderExcluirhahahaha, obrigada. beijos, Ivy!
ExcluirMuito bom,Virginia.Adorei
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