Um conto - por Jeanne Araújo
Segall |
Das dores do mundo
Natal chegou e ele sabia que não
havia nada que comemorar. Tivesse um pouco de carne no prato na ceia já era
presente dos mais caros. Olhou pro cinza do sertão e pensou em pedir a mãe um
caderninho e um lápis de presente. Agora que tinha aprendido a fazer o seu nome
queria escrever histórias. Logo que o sol levantou o pai o mandou pro campo,
pastorear a plantação de arroz pros passarinhos não comerem. Passou o dia a
correr de um lado pro outro, enxotando os pássaros enquanto o suor escorria no
rosto e as lágrimas nos olhos. Queria outra vida, necessitava de outra vida.
Sabia que a saída era aprender a ler e a escrever. A garganta seca, os olhos
ardendo, a cabeça tentando encontrar uma saída. Olhou para a vazante e para a
plantação de melancias ali do lado. Uma sede terrível. Teve ímpetos de abrir
uma fruta, vermelha, suculenta, para matar a sede. Mas, se o pai descobrisse,
tinha certeza que o castigo viria. Tornou a olhar o céu e a pedir ao Bom Senhor
que o ajudasse a sair daquele inferno quente e seco.
Imaginou trabalhar para seu Zé do
barracão. Lá poderia ensacar farinha, varrer o chão, lustrar as botas do velho.
Ganharia pouco, mas daria para comprar os livros e aprender sobre tudo, sobre o
mundo. Poderia até viajar, ir para outra cidade, começar do zero e se tornar um
grande comerciante. Poderia não dar em nada e se transformar num pequeno
vendedor de sonhos. Isso, era isso mesmo que ele queria: ser vendedor de
sonhos. Escrever a própria história. Sonhava acordado com todos aqueles livros,
todo aquele mundo disponível para ele num pequeno monte de papel. Faltava-lhe
coragem, o pai o mataria ou jamais voltaria a lhe dar sua bênção se aprontasse
uma dessas.
Com a chegada da noite, o
silêncio e as orações abateram-se sobre todos. Ao lume da lamparina que
queimava os olhos e enchia os pulmões com o cheiro do querosene, fez-se as
orações mais simples. Não havia enfeites de natal. Não havia sonhos naquela
pequena sala. Tudo era cru e seco. Se havia algum resquício de amor, deveria
estar bem guardado dentro do baú encostado à janela. A mãe colocou a sopa rala
em cada prato. Comeram em silêncio. De dor e solidão. O dele, de desespero. Não
houve presentes. Não havia dinheiro pra caderno e lápis. Terminada a ceia, o
pai acendeu o cachimbo e deitou na rede. A mãe retirou os pratos da mesa
rústica e jogou numa bacia com água barrenta. Ele deitou-se num canto pedindo a
Deus que aquele dia terminasse logo e as coisas voltassem ao normal. Era bem
mais fácil ser feliz na rotina, sem dias especiais. Como não ganhou presentes,
pediu ao Bom Senhor coragem para mudar sua vida, coragem e determinação para
fazer o que tinha que ser feito. Chorou um choro doído, um choro de nunca mais.
Anoiteceu na rede, acordou no mundo. Nunca mais se soube dele.
Jeanne
Araújo é natural de Acari e mora em Ceará-Mirim, Rio grande do Norte. É
professora especialista em Língua e Literatura, poeta e escritora. Tem
publicado os livros de poesias "Monte de Vênus" (Offset), “Corpo
Vadio” (Editora Penalux) e o romance epistolar “Combustão” (Editora Penalux),
este último em parceria com o jornalista Cefas Carvalho. Premiada em vários
concursos de poesia e prosa estaduais e nacionais.
Email:jeannearaujo.acari@hotmail.com
Essa é meu orgulho.
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