Dalila Teles Veras - em poesia

Arte de Luciane Valença


desobediência

os acontecimentos
batem à minha porta

estridentes, insistem
                   batem
                   batem

se não os atendo/atento
insinuam-se pelas frestas
mandam sinais
               fumaça
               notícias
               megabaites
e
               batem
               batem

se me finjo de morta
explodem a vidraça
estilhaços
prestes a romper
aneurismas herdados

contrariando o mestre
(para que a língua não trave
para que não me arrependa)
deles construo poemas
e
com certo engenho
alguma poesia

(tempo em fúria, Dobra/Alpharrabio Edições, 2019, SP)


busca e espera
     
       "Dá-me, pois, a ilusão d´uma só hora
         D´um final suspenso e adiado"
         Só mais um fado, Jorge Fernando e Amadeu Ramin
  
cena um
na praia, a família
em férias, a menina
única filha
constrói castelos

cena dois
um breve vacilo
a menina
sumiu, sumiu...

cena três
louca, a mãe
procura
(em cada olhar menino
em cada vestido rodado)
procura, procura...

cena quatro
uma década passada
a mãe, não menos louca
(coleciona bonecas
veste-as)
espera, espera...
 
(estranhas formas de vida, Dobra/Alpharrabio Edições, SP, 2013)


 

 Das mortes

da primeira vez que te vi morrer
, a lembrança do horror:
teu corpo (ainda) morno e nu
na pedra fria
e
a marca da dor
num rosto que já não era o teu

da segunda vez que te vi morrer
, o torpor das exéquias:
pesadelo da tarde sem ar
sensação de estrangulamento

da terceira vez que te vi morrer
, o choque e o estranhamento:
teu nome citado no templo
na oração aos defuntos

da última vez que te vi morrer
, a dor fina e lancinante:
o descarte dos teus pertences
a certeza do nunca mais
nunca...
(a morte também em mim)

(retratos falhados, Escrituras, SP, 2008)


a ilha à minha porta amarrada 
                       
                              Amarro à tua porta o Mondego
                              Regresso-me./ Paz?
                                                      Murilo Mendes
o regresso
(ainda que
da memória seja
o mergulho
vertical e fundo)
é paz impossível

recordar é voltar
(e
perder-se)
inquietantes caminhos
névoa no que era luz

a ilha
(à porta
permanentemente
amarrada)
janela
(aberta para dentro)
passaporte
para o que sou

(solidões da memória, Alpharrabio Edições, SP, 2015)


* Todas as ilustrações são telas da artista plástica Luciane Valença


Dalila Teles Veras. Nascida em Portugal, em 1946, vive no Brasil desde a infância. Autora de inúmeros livros de poesia, como tempo em fúria (2019);  Setenta anos, poemas, leitores, poemas escolhidos por 70 amigos para celebrar seus 70 anos (2016); solidões da memória (2015), estranhas formas de vida (2013); retratos falhados (2008). Publicou ainda dois livros de crônicas, dois diários literários e alguns ensaios. Desde 2009, mantém o blogue  À janela dos dias (http://dalilatelesveras.blogspot.com/). Sítio pessoal e literário: www.dalila.telesveras.nom.br
Fundou e dirige, desde 1992, a Alpharrabio Livraria, Editora e Centro Cultural, em Santo André/SP, cidade onde também reside.

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