Um Conto de Eliana Bueno Ribeiro
Luciane Valença |
Moema
por Eliana Bueno Ribeiro
Fui eu quem o viu primeiro, trazido pelo mar. Caído lá,mais morto que vivo. Afogado? Corremos todas, ele deu um suspiro e olhou pra mim. Juro, ele olhou primeiro pra mim, depois pra ela, depois pras outras que o cercavam. Logo depois fechou os olhos como se tivesse morrido. Como se tivesse dormido. Elas ficaram ali rindo e falando e ele imóvel como um peixe grande encalhado na praia. A cara encostada na areia, cheia de cabelos pretos misturados com as algas e peixes miúdos que se debatiam como numa rede. Um branco vestido como um branco, cheirando como um branco. Joelhos no peito, abraçava um osso escuro ou galho de árvore que lhe ia quase aos pés. Quando os homens chegaram ele se esticou num pulo, como uma cobra.No meio de todos eu abria caminho para que ele me visse, empurrando as outras. Apertei seu braço para que ele não tivesse medo, eu estava ali, eu sempre saberia do que ele precisasse. Eu e ela.Nós duas cuidamos dele e o fizemos muito feliz muitas vezes , e fui eu quem o ajudou a esconder seu tesouro, que preciava secar, ele me disse, no barranco de areia, num buraco de cobra ou peixe-cobra, peixe com osso, moreia, caramuru.
Fiquei sempre a seu lado enquanto seu corpo era pintado, o cheiro acre da tinta enchendo o ar. Pra ele nao ter medo nem das velhas desdentadas nem das criancas gulosas, eu estava ali, esperando com ele o dia da cerimônia. Ele precisava de uma clareira no medo, uma clareira de prazer onde pudesse parar de pensar, onde pudesse pensar.
Naquele dia eu estava na praia e o vi que com os olhos procurava o que escondêramos. Mas como todos fiquei aterrorizada com o fogo e o trovao que ele convocou. O gavião caiu a meus pés. E como todos caí aos pés daquele estrangeiro dono de um gavião que matava outro.
Todo mundo pensa que morri. Nadei muito. Precisava alcancar aquele barco onde eu tinha de estar também. E que se afastava da costa rumo ao outro lado do mundo. Sem mim. Exausta, mergulhei.
Quando emergi esbarrei com muitos homens, todos precisando de ajuda.
O francês trabalhava na fábrica de aviões de São José dos Campos. A primeira vez que fizemos amor, na praia de São Vicente,
madrugada alta -meu deus e se passar alguém - ele alisou meu rosto, pegou meu cabelo e me chamou de Bartira.No hotel mesmo, com um barbeador cortei uma franja . Ficou torta mas ele riu e repetiu com seu sotaque : -Bartirra! E para me mostrar que já conhecia a história do Brasil : - A mãe dos paulistas. Eu sou seu João Ramalho. Esse é o nome que te dou, vai ser teu nome agora.
E eu o fiz feliz e me fiz feliz com a felicidade dele.
No avião uma angústia me tomou: como iria vê-lo, com ela ?
Corri ao Louvre e o vi entrando para se casar, as carruagens chegando ao carrossel, as luzes por trás das vidraças enormes, a rainha que a batizava e lhe dava o próprio nome! E ela que sorria ao lado dele, uma capa de arminho, os longos
cabelos recolhidos num coque e brincos de brilhantes. Eu, ali, nua, em pé no jardim imenso, tentando adivinhar atrás de que janelão
iam-se deitar. Ela, mãe de prole numerosa, eu sem nome e sem família, solta no mundo, morta afogada numa costa do hemisfério sul.
O bar fica na Bélgica, na França é ilegal. E não fecha nunca. 24 horas aberto. Quando chega um cliente, a qualquer hora, a gerente toca um sino e todas descemos, nos enfileiramos e ele escolhe . Dormimos prontas,vestidas e penteadas, um sono preocupado, que pode ser interrompido a qualquer hora. As outras gastam fortunas com vestidos de noite e maquiagem e enfeites. Eu escolho a simplicidade: jeans , camiseta, cabelo solto e cara lavada como uma índia e sou sempre escolhida.
Só trabalho três vezes por semana, sei que tenho sorte, Jean-Christophe diz que é um passeur como São Cristóvão, que ajuda pessoas a atravessarem o rio. E que sou um fardo leve. Moramos a uma hora do bar, posso fazer em até menos, dirijo bem. Graças a seus amigos , nunca fui incomodada , se me param na fronteira,
só mostro meus documentos , eles me conhecem.
Padre Pierre vem de vez em quando ao bar conversar conosco. Ele paga as dívidas das meninas que queiram ir embora e as apresenta a um grupo de « abolicionistas ». Mas eu não devo nada.Não tenho gastos. E ganho bem, sei fazer os outros felizes. Outro dia apareceu lá um antropólogo brasileiro,que estuda índios e gosta de literaura e, querendo me impressionar, me disse que sou uma mirixorã. Pois bem, não tenho por que ir embora. Jean-Christopher recebe toda a semana o dinheiro que ganhei com meu suor . Não fico com nada.Não tenho roupas nem jóias e o űnico perfume que
me excita é o da tinta que pinta o corpo do que vai morrer. Viajo leve, só uma bolsa de mão. Não me queixo.
Ao menos uma vez por mês vou ao Louvre. Jean-Christophe fica impressionado com meu interesse por arte. Entro pela cour
d’honneur e fico observando através dos janelões o movimento em torno deles. Ela é linda, filha de chefe e a considram exótica.
Ele não se interessa mais por ela e sei - eu sei- que só pensa em voltar àquela praia e a seu próprio corpo, àquele tempo. Ele me esqueceu.
Ele envelheceu muito, engordou, mudou seu sorriso, seu lindo cabelo , agora todo branco, está mal cuidado. Ela não o faz rir,não o faz belo, não o faz feliz. Tenho certeza de que ela não se lembra mais de como começamos. Ele escolheu errado. Mas faz tanto tempo ! Ninguém me chama mais por Bartira. Agora todos , até o francês, usam o nome que escolhi, meu nome de sobrevivente. De meu só tenho este mosquetão, mousquette, gavião ,que trouxe daquela praia e que uma única vez provocou o fogo e o trovão, e fabricou um deus. O francês ri de meu interesse por sua arma de serviço, que ele me explica uma vez por mês que não é um mosquetão – arma que não se fabrica mais – e que guarda cuidadosamente toda noite. Ele não sabe que prestei atenção, sei como carregá- la e onde estão as balas. Sou boa para esconder e para achar coisas.
Me faz bem estar perto dessa arma, foi só o que me ficou dele. Pro dia em que eu não aguentar mais.
Eliana Bueno Ribeiro nasceu em Niterói, Rio de Janeiro. Professora de literatura, ensaísta e tradutora, publicou pela Editora Paulinas, São Paulo, Santo Antonio ( 2012) e uma tradução dos Contos de Perrault( 2016). Para a mesma editora prepara " As irmãs de Perrault", uma reunião de contos de fadas franceses do século XVII escritos por mulheres.
EXCELENTE E CHEIO DE SIMBOLOGIAS SEU TEXTO
ResponderExcluirObrigada, querido Rogel Samuel. Um beijo
ExcluirTexto extremamente intrigante,onde subjazem simbólicas representações de um universo onírico e particular.
ResponderExcluirObrigada, Denise Porto, pela amabilidade da leitura!
ExcluirBeijo!
Obrigada, querida Denise Porto, pela amabilidade da leitura. Beijo
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