Ouvindo Mulheres 02 - "Puta", conto de Cinthia Kriemler


Ouvindo Mulheres - 02
por Cris Lira


Olá, leitoras e leitores!

Hoje, na coluna Ouvindo Mulheres, trago a leitura do conto visceral de Cinthia Kriemler, "Puta," que integra a Coletânea I do Mulherio das Letras (Mariposa Cartonera, 2017) organizada pela Henriette Effenberger. É uma história triste e dura, contada de maneira sucinta e crua. É a voz de uma mulher que por vezes nos choca, mas pela qual sinto uma profunda empatia. Termino o conto com o desejo de convidá-la para um café; um convite para que desfie o lirismo das noites em que ainda acreditava no amor. Imagino o sorriso cansado dela no espelho ao me ouvir e tenho quase certeza de que riria, "também você é como a polaquinha?", penso que ela diria. Sorrio também. Como esse café é impossível, faço um convite a você, que me lê, para que adentre o universo ficcional de Cinthia Kriemler comigo. Deixo aqui o conto e a leitura do conto para vocês!


Obrigada por me escutarem. Obrigada por nos escutarem.
Leiamos mulheres. Escutemos mulheres.
Até a próxima coluna!


Puta
de Cinthia Kriemler

Cuspiu na pia. Junto com a saliva, os restos do sexo. Estremeceu. Não tinha nascido para aquela vida. Fazer dinheiro trepando é pra quem tem estômago. Lembrou de antes. De quando não contava as rugas e as unhas estavam sempre feitas e o perfume francês e as roupas eram recebidos de presente, pagos por homens importantes. E de quando cada encontro era uma festa de bebida e pó. Cheira aí, meu bem!, e ela fungava tudo. Para aguentar as trepadas alucinadas, os tapas, as humilhações. Tinha que cheirar. E beber. Que o champanha e a vodca deixavam qualquer porra com gosto de importada.

Sacudiu a cabeça e estremeceu de novo. Dessa vez, mandou embora o tempo. Porra de madrugada fria! Porra de úlcera maldita que dói toda hora! Mas tinha coisa que doía mais. Os murros do cafetão; a penetração por trás, forçada, apressada, arrebentando tudo. Não se acostumava. As outras debochavam:  Onde já se viu, puta com frescura? Pois ela era uma puta danada de fresca. Desconsentia. Negava. Argumentava. Depois fazia. Tinha medo de o freguês reclamar para o cafetão. Mas não entregava a bunda sem luta.

Até que não é caro o remédio da úlcera. Só não adianta de nada. Vai ver é este conhaque vagabundo que está cortando o efeito dos comprimidos.

Jogou na boca dois chicletes de hortelã. Testou o hálito. Retocou o batom vermelho e limpou os dedos na moldura de madeira apodrecida do espelho. Parou um instante para ver o coração rabiscado na parede. Não estava ali na semana anterior.  ❤Marcelo ama Polaca ❤. Mais uma idiota achando que cliente se apaixona por puta. Polaca, Polaca, fica esperta. Deve ser menina nova. Chegaram umas catarinenses que ela ainda não viu. Só gente bonita essas gurias do sul. Duro é trabalhar ao lado delas na rua. Altas, cabelos loiros, pele sem marcas. Droga! E ainda trepam bem, as vacas. Atraem os homens mais novos. Os melhores. Desses que transam com puta falando poema e prometendo amor. Uns fodidos, isso sim!

Depois, ia sobrar para ela falar a verdade. Que puta não sonha. Que puta não faz planos. Que puta não fala de amor. E juntar os pedaços. Oferecer o pó, a pedra. Entregar o conhaque vagabundo. Estancar o sangue nos pulsos frios numa noite de navalha cega.

Porra! Quem será essa Polaca? Cuspiu no chão da rua. Estava ficando velha. Sentindo pena da meninas do sul. Sentindo falta daquele antigamente de merda. A dor da úlcera queimando por dentro. O coração rabiscado na parede mostrando o pesadelo dos sonhos. O poema ausente em cada transa fazendo falta, finalmente.

Pegou os comprimidos na bolsa minúscula. Aquela desgraça toda ia passar.

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