Poemas e prosa poética de Nic Cardeal - por causa da Mulher
REDEMOINHOS
na rede
não é peixe
- nem espere que eu te diga
onde fica a isca.
a turvar os olhos, a alma, os sentidos,
não sei dizer se 'inda te acredito
quando vens depois das seis,
de mês em mês,
e esqueces o chapéu sobre o jornal.
na minha garganta gasta
é como sede escondida depois da seca.
Nem espere que eu te dê a minha veia,
se já não sabes beber a minha sina,
se não deitas a alma em minha cama,
e nem te lembras do meu nome
depois da mesa.
quando te demoras na esquina,
esperando um vento, um torvelinho,
uma onda em espiral
- redemoinho de saudade -
(foi assim que me disseste
quando abriste a porta
e jogaste a chave).
- foi apenas um temporal
que passou em minha vida
ao largo do caminho
sem saída.
na rede
nunca foi anzol.
Arte de Adam Martinakis
JÁ DEU FLOR
Eu sou o milagre
a pequena casa na floresta
despedaçada esperança
afastando a cortina
intempérie em fúria
rachaduras nos cantos das unhas
fogo na lareira
eu sou a lenha
o lanho
a carne no teu corpo
o cerne do teu ato
o ponto cego
tão exato
olhos fechados
vislumbre na percepção do amor
arquétipo desfigurado
paralelo em contraponto
a floresta na pequena casa
a tua festa finalizada
a carne fraca
a carne louca
osso duro de roer
toda indecência
passou da hora
a minha alma
já deu flor
- não suporto mais morrer todos os dias.
Fotografia de Paulo H. Camargo Batista
À MARGEM
Eu não sou janela
— sequer porta —
guardo em mim
prisões antigas
em que receios fazem conluios
com devaneios de outros tempos.
Não me faças arruinar esperanças
— não sou feita em argamassas —
minhas fronteiras
— tão estreitas —
foram tecidas sem que camelos
consigam ultrapassar fendas de agulhas.
Não sou simétrica,
sou confusa
— quase obtusa —
meus ângulos sobrepostos
desqualificam hipotenusas.
Não tenho pisos,
meus pés são descalços de compassos,
minhas arestas são precipícios profundos.
Não queiras ocupar minha pele,
não te atrevas a conjugar
o silêncio que me comove,
nem te movas a alçar voo
em meus horizontes,
pois que minha prisão é perpétua
entre mim e a minha métrica.
Eu não sou aquela.
Nem a outra.
Se guardares a ânsia,
poderás vislumbrar um lampejo
da minha alma pendurada no vão da entrada.
Não me faças prometer descobertas!
Fui condenada à pena máxima:
não posso ser outra.
Não me desconheças:
eu sou aquela
na qual receios fazem conluios com esperanças!
Quem sabe assim pagarei o débito a mim imposto
por viver à margem da tua sentença!
Imagem da internet sem indicação de autoria
EM DESALINHO
No meio da casa
tinha uma pedra.
Tinha uma perda doída
depois da porta destrancada.
No meio da sala
tinha uma fotografia
sem nenhuma data.
Eu sozinha
no meio da vida
depois da perda
no meio da estrada.
No meio da estrada
avistei passarinhos.
Caí no meio da rua
ao avistar a lua.
- Eu era distraída
no meio do caminho.
No meio da vida
recebi tua pedrada.
Bateu no espelho
- fiquei de alma quebrada.
Rasgou minha pele
- não matou minha fome de vida.
Tua arma tão desmedida
- meu caminho sem saída.
No meio da calçada
fui devagar
fui divagar.
Tantas vezes
cansei no caminho
- outras vezes
cansei do caminho.
- Eu fui uma pedra
no teu caminho.
No meio da estrada
já não sei de nada.
Teu soco ardeu no olho
- tive dores absurdas
no meio da tua ira.
Nada demais.
Nunca é demais.
Sempre és capaz.
Tuas pedras atiradas inteiras
- quebradas -
moídas em teu destino menino.
Eu sou uma pedra
rolando desenfreada
no teu carinho.
(Daqui a pouco serei perda
serei quase nada
TERRA PLENA
Sim. Minha 'terra' é plana! Não aquela que esperas navegar até alcançar as arestas. Não te atrevas a tocar em minhas bordas! Nem com tuas mãos, tampouco com teus passos pesados de macho a sentir-se alpha. Não te enganes tanto com tuas certezas quadradas a ocupar tuas caixas fechadas. Abre as tuas arestas. Permite o vento, o frescor das brisas, a agitação necessária das tempestades ligeiras. Não te deixes cair em tentações idiotas de um corpo másculo que só se importa com satisfações de gozo. Estende teus olhos para além dos horizontes do corpo. Tu não és assim tão pouco! Não te satisfaças tão somente com uma carne que em breve estará gasta, desvanecida entre as dobras do tempo menino - esse sim, proprietário direto, perene, completo, das tuas noites e dias, a cobrar-te insistentemente o pedágio encarecido do teu respiro no mundo. Não te enganes com tão pouco e ilusório paraíso!
Sim. Minha 'terra' é plena! Aquela a qual, a teu bel prazer, jamais terás acesso ou direito de uso, sem que tenhas licença ambiental do meu coração, nos conformes únicos do meu próprio desejo. Quiçá conceder-te-ei servidão de passagem, vez por outra, ao lado de cá da minha margem! Ainda assim, teus ódios repentinos estarão sujeitos a despejos, pois saibas que não mais sou afeita a sofrimentos contínuos!
Não esperes que essas minhas planícies, depressões ou monte de vênus, te sejam navegáveis até o teu descobrir das minhas entranhas! Não te deixarei entrar por mero capricho ou desejo incontido do teu órgão ativo! Somente encontrarás abrigo no ventre do meu mundo quando souberes respeitar-me enquanto útero!
Sim. Minha 'terra' é prana! Ar em movimento. Respiro fundo no contratempo. Torvelinho necessário em tempo de contraponto. Também é montanha, precipício, labirinto ou caminho. Fome, desejo, sede de ninho. Mar profundo, veio d'água, ribeirão. Vertente de água salobra, cachoeira, turbilhão. Minha 'terra' é fenda, buraco negro, cometa, constelação. É céu aberto, chuva fininha, temporal de verão.
Sou mulher. Daquelas que amamentou teu coração. Que te ensinou o passo, a palavra primeira, que fez tua comida e te ergueu do chão. Que lavou tua ferida e te salvou do desespero da ilusão. Por isso, não te atrevas, sem minha licença, a devastar minhas fronteiras, estabelecer meus limites, ou sufocar minhas veias! Nem te assustes se te chamarem a fazer minha louvação! Aceita-me parceira, companheira em amor e condição. De outro modo, desejo-te sorte na estrada, segue sozinho, não te quero sem coração! Pois minha 'terra' é gana, esperança, germinação!
Lindos poemas e prosa poética!
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