Resenha - Conversa de jardim por Mariana Belize





Resenha do livro “Conversa de jardim”
de Maria Valéria Rezende e Roberto Menezes

por Mariana Belize


“Vamos confundir não só o tempo, vez ou outra, vamos confundir nossas falas também.”

Nessa quarentena, muitos autores liberaram para download gratuito suas obras. Uma das que aproveitei para conhecer foi Conversa no jardim, de Maria Valéria Rezende e Roberto Menezes, que está ainda disponível na Amazon para download gratuito.

Os dois autores são romancistas: Maria Valéria lançou Quarenta Dias e outros romances, assim como Roberto Menezes lançou Pirilampos cegos, Palavras que devoram lágrimas, entre outros títulos. E cito aqui os romances já pra deixar recomendada a leitura, hein? Os dois, no entanto, têm estilos bem diferentes, o que é muito interessante de se observar na leitura de Conversa de jardim. Já desde o título, como também a proposta do próprio livro, não é de modo algum ter algum flerte com a biografia (vou falar disso, conforme o texto avança).

A proposição de ser uma conversa é, estruturalmente levada a sério, os diálogos se mantém por todo o livro. Não tão arrumados quanto o leitor mais metódico pode desejar, mas também não é bagunça. Na verdade, a disposição e reagrupamento das falas e as ausências de aspas aqui e ali que nos confundem as vozes… e as vozes da nossa cabeça que leem os livros, você já tinha percebido que elas existem?

Essa proposta que, de tal forma, estabelece suas próprias regras, trazendo para a leitura um desafio que diverte os autores, sem sombra de dúvidas, e pode pegar o leitor encalacrado pelo pé. Ou melhor, pelo olho.

e qualquer desatenção, faça não

É bem isso, então, leitor. Se for pra ler Conversa de jardim, como qualquer outro livro, com essa tua pressa aí, vai ficar difícil. Melhor ver série.

Mas você não tá de quarentena, bicho? Então sossega esse bicho carpinteiro, minino.

Tem uma linha teórica da qual sou filiada que é a Estética da Recepção. Nela os autores dizem que o leitor não tem uma presença passiva na leitura, mas pelo processo de ação leitora, ele é capaz de criar uma outra obra a partir e dentro das lacunas que esta obra lhe dá. A partir daí, mesmo Goethe, poderia ser tomado por suas lacunas e se tornar ainda maior com as leituras posteriores.

Um processo natural, a partir do qual, as interpretações, quanto mais profícuas (palavra bonita, mas difícil), maior a obra, maior sua presença no tempo e sua relação com mundo e atualização no tempo. O leitor, sendo aquele que interpreta em seu tempo, pode trazer essas camadas de leitura para as obras. Por isso é importante, leitor, se manter lendo não só a gente aqui do século XXI, como também o povo que já está no lastro da História, o taxado de clássico, que muita gente faz bico pra não ler. Já leu Stendhal?

Não é que você vai ler a obra e só. De certa forma, a obra também lê você e seu tempo, sua história e sua vida – a leitura passa por muitas etapas nesse sentido. E é por isso que ler é um processo complexo e cansativo, exigindo muito mais do que assistir à passagem das imagens na televisão, tórridas, rápidas, voando a cada segundo e a cada microssegundo implantando mais uma propaganda, um desejo, uma fome e uma sede no teu cérebro. Ler desacelera teu ritmo e impacta de forma positiva no corpo. A leitura de entretenimento, da qual não falo mal, mas não me peça para aconselhá-la. Sabe por quê? Ela já conta com todo aparato multimilionário de propaganda e marketing. E ainda tem que contar com a minha criatividade a seu dispor? Caro leitor… aqui não vai rolar.

Voltando ao livro. Roberto e Valéria são os autores ou personagens? Não tenha tanta certeza ao responder, essa é uma das brincadeiras a que estamos participando ao ler o livro. Se mesmo com o tempo, eles se divertem ao nos confundir, mais do que explicar, o que te garante que as informações pessoais de cada um são verdadeiras? Leitor, já estamos desde Machado de Assis, pelo menos, na era do desconfiar do narrador, querido.

“Mas é natural e é até bom que essas duas vozes, aqui ou ali, se confundam. Uma conversa a quatro mãos embaralhadas.”

Essa dança que assistimos, chamada Conversa de jardim, é de tal modo sedutora que, quando o livro acaba você parte pra ler de novo. É sério. Entre detalhes de imaginação, conselhos para novos autores, questões de teoria, tempo e espaço, detalhes das literaturas dos dois autores, ficamos imersos nesse diálogo entre duas vozes.

As duas vozes em algum momento podem ser tomadas por uma? Sim, se pensarmos que mesmo nós, aqui quietos temos uma voz na cabeça que narra o que fazemos, essa voz do pensamento frenético ou tranquilo, dependendo do seu grau meditativo ou hiperativo, pode ser mais pra Roberto ou mais pra Valéria… aí bem no seu cotidiano mesmo. Lembro que Clarice Lispector (eu já devo ter citado isso em outro texto daqui) mas a Clarice fala que a pontuação do texto mexe com a respiração de quem lê. Duvida? Então lê o seguinte: “Quando eu era pirralho, ficava imaginando o que dois escritores conversavam quando se encontravam, eu imaginava seres tão, tão, falando nisso, quando leio essas cartas trocadas por escritores meio que me soam artificiais, sabe?”

agora lê uma parte do monólogo de Molly Bloom:

o sol brilha para você ele me disse no dia em que estávamos deitados entre os rododendros no cabo de Howth com seu terno de tweed cinza e seu chapéu de palha no dia em que eu o levei a se declarar sim primeiro eu lhe dei um pedacinho de doce de amêndoa que tinha em minha boca e era ano bissexto como agora sim há 16 anos meu Deus depois daquele longo beijo quase perdi o fôlego sim ele disse que eu era uma flor da montanha sim certo somos flores todo o corpo da mulher sim foi a única coisa verdadeira que ele me disse em sua vida

de Ulysses, de James Joyce. (Transcriação: Haroldo de Campos, 1971.

Já pode dizer que leu James Joyce. Sentiu? Sentiu. Agora pare e pense no seguinte, eu espero: quantas vozes você tem na sua cabeça quando tá lendo um livro? Como o autor mexe na sua respiração quando você lê e como isso muda seu corpo durante a leitura? É, literatura é isso.

(Pode ser lendo Crepúsculo também. Mas te garanto que a Molly Bloom é bem mais sapeca. E depois quando você retorna ao Crespúsculo, ele já não parece tão bom assim. Comparar leituras é saudável. Não é papo de crítico, beleza? É questão de bom senso.)

“Não acredito em biografia. Nem em autobiografia. Escreva aí. (…) Isso vai servir a quem interessa.”

Dois pontos aí se sobressaem, na minha leitura: a primeira é o descrédito da biografia, por Valéria e o segundo o da autobiografia, principalmente com o estatuto dessa teoria da autoficção que, muitos, muitos mesmo tem estudado, academicamente falando e escrito, comercialmente falando. A treta de Valéria, ao qual Roberto se refere, tem dois focos fundamentais, não só para a compreensão da construção do livro como principalmente nos conceitos de literatura que estão em jogo nessa fala, como em outras vozes críticas às quais Valéria reverbera nesta obra.

A primeira, com  relação à biografia, é a pretensão de veracidade nas informações expostas, atestando assim o status ficcional, não só do livro, como também da própria relação do artista com a vida. Não é a vida em si, ela mesma uma sucessão de projetos e invenções que vamos fazendo para criar ou conseguir algum sentido? Sendo assim a vida mesma não tem em sua atribuição um status de ficção?

Leitor, leitora, se você ainda confunde ficção com mentira, deixa eu te explicar: ficção como entendida nesse texto parte dos estudos da Estética da recepção, uma escola de teoria na qual, entre outras coisas, atribui a ficção o significado de ser o resultado da relação entre fictício e imaginário. Tá no Stierle, no livro A ficção, que é bem legal de ler e facinho, vale a pena. O caso é que a ficção está nessa interação. Mas, Mariana, o que é o fictício? O fictício é a obra realizada. O livro Conversa no jardim, por exemplo – é o fictício em sua instância de obra acabada. O imaginário é mais complicado de explicar porque envolve outras discussões mais filosóficas que não vou entrar agora. Foca no fictício aqui comigo. O caso é que o imaginário, segundo Stierle, se materializa na obra e nas lacunas que a obra deixa, que são preenchidas e, não só isso, mas também elaboradas pelo leitor. Por isso, leitor, você é tão importante. Mas calma, não se deixe inflar o ego.

Quando Valéria se instaura contra a biografia, na verdade, a biografia é em si uma metáfora para esse estabelecimento de uma busca pelo real no que é ficção. Será que Roberto e Valéria estão juntos escrevendo? Será que Valéria está realmente falando isso? Essa e outras perguntas podem soar corriqueiras, mas na literatura, marcam essa busca pela verdade. A literatura, segundo Valéria, não é esse campo da verdade e do absoluto, nem da obra em si, nem da vida de alguém presente ou descrito na obra. Desista, não vai achar nada.

Outra figura que se insurge contra essa questão é a própria Ana Cristina Cesar em seu Correspondência Completa, com relação a Gil e Mary. (Eu sempre cito esse livro da Ana Cristina porque ela mesma é uma figura controversa, da qual muito do que escreveu, por conta da linguagem direta, foi compreendido apenas em relação à sua biografia. Isso acontece muito com Hilda Hilst também. Parece ser um caso que ocorra sobretudo com mulheres, pelo que tenho notado há algum tempo. Ao mesmo tempo, no campo poético, cada vez mais há a ausência de eu-lírico e, muitas vezes, há a confusão entre memória, história, biografia e ficção – como se as quatro estivessem de mãos dadas. Não estão. E o papel da crítica literária é justamente escrever sobre essa distinção, como também sobre a relação entre arte e vida, tema da minha dissertação, inclusive.)

“E vai ser. Ah, outra coisa, meu filho, pára com essas metalinguagens. No começo soa até engraçadinho, mas depois… Não tenho paciência pra ler um livro todo com esse tipo de brincadeira”, Deixe comigo.

Quanto à autobiografia, segue o mesmo processo. Aquele que escreve, se acredita mesmo que está lidando com fatos, é um ingênuo que ainda não compreende os processos da memória. Basta gastar uns minutos para compreender que a memória, e isso também aparece de forma monumental em Conversa de jardim, a memória é mais construída de lacunas e inversões do que de fatos e verdades.

Roberto é, de alguma forma, mais solidário ao leitor do que Valéria. Preocupa-se em situar o leitor, espacial e temporalmente, como também utiliza-se do verbo “imagine” que, desde sua etimologia já nos sugere mais do que imagem e mais com imaginação. Aliás, falando em imago, Luiz Costa Lima, no livro Um teórico nos trópicos (2019), traz justamente essa discussão quando fala sobre a balela do discurso de que vivemos “na era das imagens”.

Na verdade, ele demonstra que vivemos na era de uma potência visual que é sempre requisitada, seja na televisão, seja no facebook, por exemplo, mas que imago perdeu sua ligação com a própria etimologia na qual estaria em contato com immaginari, “portanto em caráter opositivo a realitas”, diz ele. Aqui fica meu questionamento, lembrando do pensamento de Costa Lima quanto à questão do controle do imaginário, manter a ideia de que a imagem está ligada a realidade, sendo dela um retrato e não um reflexo oblíquo, pode estar ligada à noção de controle exercido sobre nossa capacidade de duvidar do que vemos?

Se o que você vê na televisão é o real, o factual (cf. Costa Lima), então, não há o que discutir. Mas se você por um momento critica o que vê, dando à imagem o status de dúvida plausível, já que pertence ao campo do imaginário, olha que bela hora para pensar nas fake news…

“Não existe foco em conversa”

Mas tem que ter fim, infelizmente.

E fica aí então, o convite pra essa Conversa de jardim. Há muito o que pode ser dito sobre esse livro e ele merece mais atenção do que tem recebido: não é apenas uma conversa, como também uma visita aos métodos de cada um ao escrever, uma espécie de diálogo entre amigável e conflituoso. Não é brincadeira o que esses dois autores fizeram e, ainda que não incentivem a busca pela teoria literária aos autores jovens, eu também não aconselho, Valéria, eu também não aconselho…

“E aí, tem alguma rotina dentro do teu mundo de maluquice?”

Mas daí aos resenhistas, aos que desejam escrever sobre as obras dos autores, estes sim tem a obrigação de se embrenhar na teoria daquilo sobre o qual escolheram escrever. Não para se tornarem críticos, já que o papel do crítico são poucos os que querem fazer e que não está no fato de dizer se uma obra é isso ou aquilo, mas tem mais coisa envolvida nisso que vou deixar prum outro post.

Mas aqueles que se embrenham a escrever sobre literatura mas botam o pé apenas o raso, achando que resenha é brinquedo e mera propaganda, deveriam tomar muito cuidado. A internet é um campo largo e fundo, mas essa cova em que estás

em palmos medida

é a conta maior que tiraste em vida.

Então, existe um lastro histórico, crítico e filosófico para todos nós que escrevemos sobre e à serviço dos autores, à serviço da literatura, principalmente a brasileira. Resenha não é slogan.

“Ótimo. Você não trata escrita como hobby, esse é o segredo”

Laroiê!


Projeto Literário Olho de Belize








Mariana Belize criou e escreve no Projeto Literário Olho de Belize, é mestranda em Literatura Brasileira pelo Programa de Letras vernáculas da UFRJ. Formada em Letras - Língua Portuguesa/ Literaturas - da UFRRJ – Nova Iguaçu Escreve resenhas críticas com base nos seus estudos de Crítica e Teoria Literária com base na Estética da Recepção e estudos sobre a relação entre arte e vida. Também divulga seus poemas na página Galpões de Sonho, no Facebook.







Comentários

  1. Gostei de ler esse texto. Vou me enxergando nas palavras, as imagens chegando de mansinho, se encostando, como se já soubesse de tudo que foi dito. Esperando alguém para me dizer e perceber enfim...

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