Sandra Godinho - Um Conto forte e instigante
Di Cavalcanti |
O
silêncio que não cala
Sandra
Godinho
O meio.
O
silêncio escorregou da boca da menina para a língua de asfalto que se
desenrolou até a esquina movimentada. Perto da padaria, o cheiro de pão tomando
as narinas, as conversas tomando os ouvidos, custou até alguém perceber aquele tico
de gente plantada à porta, com o olhar tomado de vazio. O olho inchado, doendo
muito, mas quem a visse, podia jurar que a dor era mais na alma que no corpo.
Aparentava ter uns onze anos, cabelos embolados em nós, garganta em nó, pulmão
em nó, a menina mal arfava, como se o simples respirar lhe exigisse esforço.
Alguém na fila do caixa a viu e correu a acudi-la.
̶ Você está bem?
̶ Tinha sangue, eu estava sem nada, só com a
roupa de baixo, tomando choque porque estava na água.
̶ Qual o seu nome?
̶ Ele me deu um chute e uma pancada no rosto.
Me fez entrar no carro, não sei quanto tempo rodou.
̶ Cadê sua mãe?
̶ Tinha uma luz, uma brecha para outro lugar.
Eu ouvi os gritos, eu vi o alicate, eu vi quando ele arrancou as unhas. Eu vi
as botinas e a luz forte do abajur.
Num
instante, os frequentadores a circundaram com discordâncias, chamuscando o dia
que mal nascia já parido de morte. Alguns embruteciam as palavras,
conjecturando possibilidades. A menina era moradora de rua ou filha de algum
militante comunista. Outros acaloravam as palavras, carregando na pele a
tolerância, conjecturando possibilidades. A menina foi vítima de um pervertido
ou filha de algum militante comunista. Não se entendiam.
E
a menina calada, com memória de tortura acompanhando a mágoa que nunca escapava
pelo pulmão, sempre contida, sempre silente. Em pouco tempo, a padaria virou
palco de bichos que urravam opiniões, onde cabiam todos os medos, mantras e
fantasias que se impregnavam nos vincos das peles. Em pouco tempo, a discussão
rastejava pelas paredes, brotando de tudo, tomando o tempo de todos. E a menina
calada, espalhando com seu silêncio o grito em desordem, o grito em desconsolo,
o grito em desonra, segredando pensamentos cheios de verdade truculenta. No
meio do furdunço, alguém resolveu tomá-la para si, em proteção desprotegida. E
a menina seguiu de mãos dadas com o desconhecido, que mastigava piedade junto
com gritos de horror.
O fim.
Depois
de cinquenta e cinco anos, as lembranças ainda se dobram na pele dela e chegam
a doer. Essa é a história que puseram dentro de Filomena, que acabou se criando
na casa de um e de outro, pondo seu desespero para dentro, acomodando o corpo
na dor e a vontade na fraqueza. Sem memória e sem voz, única maneira que sabia
de continuar firme, só querendo aprender a viver de novo, mesmo com a
expectativa de perdas antigas no bojo da alma.
Filomena
passou de mão em mão, de casa em casa, até conhecer um homem que a levou a São
Paulo e que lhe deu dois filhos, aprendendo com eles a falar, a restituir a voz
que se negava a descansar nas dobras da pele que envelhecia, amolecida,
desabrigada e ainda vacilante. A esperança dentro dela piscando os olhos,
musicando tons em acordes cheios de expectativas. Mesmo com a névoa, que sempre
a encobriu, ainda envolvendo suas lembranças, provocando imagens e lágrimas, as
primeiras depois de tanto tempo, represada por anos no trauma que se interpunha
nas palavras e na vontade como melodia imperceptível de violência. Despertou-se,
adulta de repente, com a saudade dos pais nos dentes, com a boca murcha de
sorrisos, sacolejando a meninice que nunca teve.
Lavava
pratos, roupas e silêncios em casas alheias, domesticando a ferida, revolvia a
poeira dos sujos dos lares, mastigava o caos que outros alimentavam, colocando
tudo no lugar. Era seu destino, arrumar, lavar, passar a limpo um passado. Foi
o que quis fazer assim que o relacionamento findou, precisava morar em outro
aconchego. Com as orelhas exalando coragem, encaminhou-se ao cartório para se
dar um nome e uma identidade, depois de mais de vinte anos sendo ninguém,
inventou um nome para si, foi quando Filomena nasceu. Registrou
também seus filhos, que passaram legalmente a existir, e partiu de volta ao
Recife, em busca das raízes que ainda teimavam em vicejar, mesmo em solo
infértil, mesmo em solo duro de semeadura. A memória fumegando incompleta,
também ela querendo vicejar após a tormenta, que não se enterra na alma a
saudade genuína, daquilo que foi bom, daquilo que foi colo e sossego.
Filomena
chegou a Jaboatão dos Guararapes com a mala de um lado e os filhos do outro. No
meio, a força de resistir. No meio, a força de encorpar a voz mal saída do
corpo. No meio, a força de peitar a tempestade da desgraça, que verga, desonra
e humilha.
Achou
uma das casas conhecidas que a abrigou, a ‘madrinha’ também casa, a ‘madrinha’
também colo e conforto. A mulher a ajudou a se manter inteira sob os dois pés,
revelando que sua mãe foi professora de História, dando aula para alunos do
ensino fundamental para filhos de lavradores e de moradores da periferia,
acusada de ‘exercer atividades subversivas’. Seu último registro de prisão foi na
sede do Doi-Codi de Recife, de onde desapareceu.
O começo.
Angélica
flutuava no balanço do parque enquanto a mãe a assistia com olhos de desvelo,
zelo e vigilância formando um rugido dentro dela, vibrando por todo o corpo. O
balanço, subindo e descendo, alimentando o infinito de felicidade desmedida, a
ignorância infantil não vendo as asas quebradas, as unhas arrancadas, a boca
deserta de dentes nas torturas e nas prisões, a ignorância enxergando outra
vida por dentro.
A
menina escorregando malabarismos para cima e para baixo, sorrindo no ar,
mantinha-se alheia ao que acontecia cá fora, onde a mãe desabafava a liberdade
ofendida, rasgando a realidade com a consciência de quem tem a voz à
disposição. A mãe acena para a filha.
̶ Vem descansar um pouco, Angélica. Não está
cansada?
̶ Só um pouquinho.
̶ Mamãe quer te falar uma coisa.
̶ O que? Vai comprar um sorvete?
̶ Vou sim, mas além disso.
̶ O que?
̶
Enquanto sua voz estiver amarrada na
memória, ela será resistência, está entendendo? Nunca se esqueça disso, do que
somos e de onde viemos. Somos feitos de partes. Somos feitos de todos.
̶ Agora você me compra um sorvete?
A
mãe a abraçou em silêncio desgastado de sentimentos e de sentidos. Depois
beijou sua cabecinha suada, os cabelos castanhos esvoaçando ao vento, tecendo
teia de ternura, traçando trilhas de liberdade e luta enquanto respirava
esperança.
Obs.
O conto foi inspirado em um dos depoimentos relatados no livro “Cativeiro sem
fim” do jornalista Eduardo reina, Editora Alameda.
Sandra Godinho nascida a 27/07/1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas de contos, sendo agraciada com alguns prêmios . Publicou O Poder da Fé (2016), Olho a Olho com a Medusa (2017), Orelha Lavada, Infância Roubada foi o único livro de contos finalista na Maratona Literária (2018) do Carreira Literária, agraciado com Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019) e semifinalista do Prêmio Guarulhos de Literatura (Escritor do ano 2019), O Verso do Reverso ganhou o Prêmio de Melhor Conto Regional da Cidade de Manaus 2019, Segredos e Mentiras (inédito) foi finalista no Prêmio Uirapuru 2019, Terra da Promissão foi publicado (2019) e As Três Faces da Sombra foi o romance ganhador do concurso da Editora Fora da Caixa (2019), no prelo.
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