Um Conto forte e terno - por Henriette Effenberger
Aquarela - Luciane Valença |
“Rola-me
na cabeça
o
cérebro oco. Porventura, meu Deus,
estarei
louco ?”.
Augusto dos Anjos
Louquinha - Lelé
por Henriette
Effenberger
Diagnóstico fácil: Psicose por
drogas.
Camisa de força química para
substituir a tradicional; a ambulância deslizando pelas avenidas; os portões abrindo-se
após a identificação, o quarto frio, as grades, o abandono...
Abandono tão seu conhecido que
já nem se importava com ele. Era íntima também da solidão, do desprezo, da
indiferença. Conhecia-os desde que nascera: do barraco onde viveu com a mãe
embriagada, das ruas onde se abrigou das surras que levava em casa e dos
orfanatos e instituições para menores carentes e infratores, os quais frequentou
com assiduidade e rebeldia. Refugiava-se daqueles sentimentos na cola, esmaltes
e solventes. Mais velha, descobriu o álcool e o crack. Ao mesmo tempo
iniciou-se nos pequenos furtos e na prostituição, onde também aprendeu a
defender-se com estiletes e canivetes...
Só muito mais tarde começou
ouvir as vozes. De início estranhou, depois se acostumou. Eram tantas as vozes
falando ao mesmo tempo que, a princípio, não conseguia entender o que diziam.
Com o tempo foi habituando-se a elas. Às vezes respondia, outras ignorava.
Foi nessa época que começaram
a chamá-la de Louquinha-Lelé. Odiava
o apelido!
Quanto mais se enraivecia,
mais os moleques a agrediam. Corria atrás deles, cuspia, xingava, fazia o diabo
e nada! O apelido pegou...
Olhou para cima através das
grades do manicômio e viu o céu cinzento. Olhou para baixo, viu homens e
mulheres, marchando como se fizessem parte de um batalhão. Gesticulavam,
sorriam para si mesmo ou ficavam prostrados, indiferentes ao que se passava ao
redor. Resolveu acenar para eles. Ninguém correspondeu.
Começou então a desfiar a
bainha do velho cobertor: as linhas emaranhavam-se num colorido desgastado. Foi
separando-as uma a uma: cinza com cinza, branco com branco, preto com preto,
marrom com marrom... Formou meadas até consumir a coberta. Nem ligava, já não
sentia frio.
Valeu a pena! Um dia, um anjo de branco abriu a porta de
seu quarto e disse-lhe: Que lindo,
Lelé! - e, carinhosamente, deu-lhe
outro cobertor novinho em folha, com cores fortes. E ela começou a separar vermelho com vermelho,
laranja com laranja, verde com verde, azul com azul... Formou meadas e as
trançou: verde com preto, branco com vermelho, laranja com marrom, cinza com
azul... O anjo sorrindo lhe disse: Parabéns,
Lelé, você é uma artista!
Lelé cobriu a boca com a mão e
escondendo o sorriso envergonhado, sorriu com o olhar. O anjo, então, pôs em
suas mãos um tear de madeira e começou a tecer, ensinando-lhe como se fazia.
Lelé dominou a técnica. Ganhou meadas de lãs coloridas e teceu um quadro,
outro, mais outro e outros mais, vibrantes e coloridos. Perdeu a vergonha de
sorrir!
Olhou para o céu azul, atravessou os portões,
deixando lá dentro as vozes que a incomodavam. Um aperto no coração fez com que
olhasse para trás e visse, da janela, o anjo acenando para ela. Certificou-se
de que em sua bagagem estavam as meadas vermelhas, verdes, azuis e brancas e seguiu
em frente, caso encontrasse as linhas cinza, pretas e marrons, agora já seria
capaz de tecer um lindo quadro. Era uma artista!
Henriette Effenberger – contista, poeta, memorialista e romancista, escreve também literatura infantil, categoria que foi vencedora do Prêmio João de Barro de Literatura Infantil e do Prêmio Manaus de Literatura. Tem dez livros editados e em 2020 pretende um romance e uma novela juvenil. Reside em Bragança Paulista-SP.
Excelente conto. Amei!
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