Virgínia Finzetto - Um conto envolvente
Gabriel Moreno |
O CÉU DA IMAGINAÇÃO
por Virginia Finzetto
Quando se mudou para o apartamento do quinto andar do novo bairro, Ana teve que respirar fundo para não cair em prantos. Qualquer cena apaixonada, como a do casal se beijando na portaria do prédio, era motivo para alimentar sua tristeza. Esses detalhes mostravam a desolada realidade de sua atual condição, reprisavam lembranças do que imaginou serem os dias mais felizes ao lado do último marido, agora apenas o ex, que acabara de lhe pedir o divórcio.
A dor da separação ainda pulsava em sua
jugular e tirava seu coração do ritmo. Estava difícil deixar para trás uma
parte de si mesma. Agora estava só, cuidando da metade que restara de mais uma
quimera. Ainda limpando as lágrimas dos olhos, recordou-se do episódio da loja.
Certo dia, comprando uma roupa nova
para preencher o vazio da alma e da baixa autoestima, enquanto procurava
qualquer coisa nas araras, deu de cara com uma imagem: "Nossa, que mulher
mais parecida comigo...". Mas não havia mulher; era um espelho atrás das
roupas penduradas. Quando percebeu o engano, ficou tão chocada e surpresa com
sua reação diante da própria imagem, que permaneceu ali por uns instantes
pensando quem seria essa que não se reconhecia mais.
Esse insight fora tema
de várias sessões de análise, até chegar à conclusão de que se conhecia pouco,
ou quase nada, e nem mesmo aceitava sua aparência real. Tudo em si havia sido
uma farsa, alguém que sobrevivera das energias do chakra básico, regida por
impulsos histéricos e pelo arder da própria vulva hipnotizada por uma
sensualidade perversa.
Pagou caro para descobrir que o que
havia perdido fora a paz interior que a tornara vulnerável a tantas relações
tóxicas e doentias. Agora, em seu novo endereço, pretendia resgatar sua vida e
seu equilíbrio emocional à custa de quase todo o salário gasto em horas
semanais de terapia.
Na primeira noite, a costumeira
insônia. No silêncio do quarto, Ana começou a divagar em lembranças até se
sentir atraída pelos sons que vinham do teto. O ritmo lento dos movimentos do
que evidenciava ser uma relação sexual ia adquirindo força naquele céu. Logo
percebeu sua respiração suspensa e cada vez mais envolvida pela sinfonia dos
pés da cama arranhando com vigor o assoalho do apartamento de cima. Quase ofegante,
conseguia ouvia os gemidos aumentarem gradativamente, até explodirem em
gritos de prazer.
Aquilo a excitara de tal maneira que
não pôde evitar tocar sua vagina com desespero, pensando apenas em si. Mas logo
os sons lascivos retornaram e dessa vez ela se entregou a ménage à
trois à distância, ouvindo e sentindo na pele o tesão e a volúpia de
carícias ofegantes lambuzadas com palavras obscenas.
Durante toda aquela primeira noite, Ana
explorou partes do corpo há tempos ignoradas e se imaginou sendo tocada e
desejada por aqueles seres incógnitos em cópula, enquanto atingia múltiplos
orgasmos solitários em seu deleite com o próprio colchão. Exausta de prazer,
acabou pegando no sono.
Acordou já no meio da tarde e se
arrumou para sair. Precisava comer alguma coisa. Chamou o elevador, que estava
parado no andar de cima, e, quando a porta dele se abriu, deu de cara com o
casal, o mesmo que havia encontrado na portaria no dia anterior, de mãos dadas
e trocando olhares maliciosos.
Dali em diante, naquele mesmo horário,
a mesma cena se repetiria todos os dias. Assim que o elevador abria as portas,
os três se cumprimentavam com sorrisos íntimos, mal disfarçando a cumplicidade
pelas noitadas em claro.
Pelo tempo que durou a combustão dos
recém-casados em lua de mel, Ana teve entretenimento farto.
Então, naquele dia em que as portas do
elevador se abriram e não havia ninguém ali, ela descobriu que sua insônia
também havia lhe abandonado. Como mágica, antes que se tornasse uma adicta
daquela droga sexual inventada, voltou a ter desejos de experimentar um novo
relacionamento, mais real do que a sua imaginação.
Virginia Finzetto é paulistana. Jornalista e editora, formada em comunicação social pela Faculdade Cásper Líbero e em história e letras pela USP - Universidade de São Paulo. Desde 2004, seus poemas são encontrados em várias edições da agenda Livro da Tribo; nas edições da revista Scenarium Plural; na coletânea do 16° Concurso de Poesias da Universidade Federal de São João Del-Rei/MG, de 2016; na antologia CONEXÕES ATLÂNTICAS, da In-Finita, lançada em Lisboa em 2018; na revista literária O CASULO e na antologia Casa do Desejo, da editora Patuá, de 2017 e 2018. Contos, crônicas e poemas também estão na GERMINA - revista de literatura & arte; na Folhinha Poética, e nas coletâneas MULHERIO DAS LETRAS NA PROSA, de 2017 e 2018. Seu primeiro livro de poemas - VI E/OU VI que o vento é aqui - foi publicado pela Scenarium Plural, em 2017. Também é curadora na revista literária POESIA AVULSA.
Adoro esse contos que começo a ler e o olho não pisca, concentrada, coração acelerado. Muito bom...
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