A magia do conto de Luciane Monteiro

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A caixa e o sonho

por Luciane Monteiro


Como é lindo, disse ela ao olhar o seu silêncio que resplandecia em sorrisos. Ninguém via, mas ela apenas sentia que crescia e se tornava esplêndido o seu mais doce mistério. Talvez devesse revelar, mas o que via era tão bonito que, egoísta, não quis dividir. Guardou numa caixinha e escondeu embaixo de um sonho amanhecido. Aquele sonho já estava bem desbotado e, por isso, ninguém o percebia mais.
Correu, então, furtiva por debaixo de suas encostas. Atracou-se com um desejo ardente sob a penumbra da sala. Os pés tocavam descalços o tapete macio; sentiu prazer. Queria voltar, mas não conseguia deixar de pensar na caixa guardada debaixo do sonho adormecido. Conteve-se ao ouvir o barulho no telhado e ficou atenta, porém somente o gato miou. Sentiu pelo corpo um arrepio gélido e quis miar também, mas apenas ronronou baixinho e riu sozinha um riso tão cheio de cores que luzes foram acesas na vizinhança.
Fez silêncio, pois sabia que estava sendo observada. Disfarçou forjando face entristecida para que ninguém quisesse roubar-lhe a felicidade que sentia. Não despertaria a inveja para não ser invadida. Fez ares sofríveis para que não lhe roubassem a energia intensa que emanava agora. Então, quando a viram entregue, partiram satisfeitos para seus universos úmidos, e somente quando se afastaram é que se levantou, vitoriosa. Queria fazer silêncio, mas até sua sombra gritava e se agigantava atingindo os que se afastavam em passos altivos. Não fora sua intenção, mas sobressaltaram ensandecidos após serem pegos de surpresa, uns urravam, outros corriam ainda sem saber de quê.
Somente ela, sua antagonista, não suportou, caiu agonizando. Pela primeira vez a olhou de frente: tinha sua própria face, mas a testa bem mais enrugada, pele sem viço. Era mesmo digna de pena a tal autopiedade. Mas não sentiu compaixão e deixou que ela agonizasse até morrer enquanto caminhava descalça e despida de medo pelas ruas de seus anos, incendiando erros, reabrigando alguns acertos. As luzes da noite ela mesma acendia agora. Antes pareciam tão distantes que precisava esperar o acendedor de lampiões, que havia muito já se aposentara.
O companheiro chegou. Ela, porém, entregou-lhe apenas o sorriso. Ele logo procurou com os olhos o sonho adormecido, aliviado que ainda estivesse ali, mas agora sentia que havia algo diferente e que nunca mais seria igual. Trocaram olhares uns instantes e ele nada perguntou, pois compreendia que não haveria respostas para o pedaço que se foi e para aquilo que ficou. Aquilo que tinha nome, mas ninguém pronunciaria. Ele retribuiu o sorriso. Mal sabia que o mistério estava bem escondido embaixo do sonho adormecido e seria somente dela.
Seria... se não fosse aquela energia furtiva que escapava da caixa e restaurava o sonho sobre ela.

Texto: “A caixa e o sonho”, do livro Taça Escarlate, Editora Inverso.



LUCIANE MARTINS MONTEIRO é natural de Paranaguá, residente em Curitiba. Graduada em Letras pela PUC/PR, pós-graduada em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira pelo CEFET/PR e em Ensino de Jovens e Adultos pela Faculdade São Braz. Professora concursada, atualmente leciona inglês para alunos do Ensino Médio. Participou das antologias Pó&Teias 1 e 2, com o Grupo de Escritores Glória Kirinus, e da Antologia Conto Brasil, pela editora Trevo. Lançou, como escritora independente, o e-book “Estela Becker, solitária e intensa” e o livro “História de uma vida: Memórias de Dona Nilce”, pelo site Amazon. Autora do livro de contos “Taça Escarlate” e do romance “A última tempestade”, ambos da editora Inverso.







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