De vez em quando um conto - Os Casais - por Lia Sena
Os
casais
por Lia Sena
Depois de três anos, o
casamento não ia nada bem. Pequenos rancores acumulados no dia a dia, por coisas bem ínfimas, os afastava cada
vez mais. Foram morar na Espanha, logo no início do casamento devido a uma
oportunidade de trabalho para ele. Ela estava muito apaixonada e o acompanhou
alegremente, abandonando no Brasil, uma carreira de próspera advogada. Tímida,
meiga, mas muito competente no trabalho, parecia transformar-se quando estava
diante de um cliente, de um juiz ou de qualquer autoridade a quem precisasse
dirigir-se, em função do seu trabalho. Ele se encantou, especialmente por isso.
Admirava a excelente performance dela no trabalho. Conheceram-se justamente porque,
algum tempo atrás, precisara dos seus serviços como advogada. Ficou muito
satisfeito com o resultado e começaram uma amizade que logo se transformou em
namoro. Como ela conseguia ser tão meiga e carinhosa, fora do trabalho? Ele pensava. Doutor em física, com a
perspectiva de um excelente trabalho na Espanha, decidiu que não iria sozinho e
teria que adiantar um pouco as coisas.
Pediu-a em casamento, após
seis meses de namoro. Ela, muito feliz, aceitou e tomou todas as providências para seguir com o marido. Com certeza daria
um novo rumo à sua carreira, mesmo de lá.
Foram viver na pequena
cidade de Salamanca, onde ele trabalhava em uma importante Universidade, mas
Sabrina não conseguiu se encontrar profissionalmente, nessa nova morada. Dava assistência
jurídica on line para algumas empresas, mas perdera aquele viço que as
atividades de advogada presencial lhe proporcionavam. A admiração de George,
caíra consideravelmente diante da mulher mais passiva, caseira, atenta a
problemas domésticos, que a esposa se tornara. Por outro lado, o descaso dele
com relação às atividades domésticas, o desleixo de jogar as meias pelo chão do
quarto, toalha molhada sobre a cama, desinteresse pelos assuntos dela, iam
minando o afeto e acumulando pequenas mágoas que refletiam na relação. Estavam
bem distantes; sentiam-se estranhos e até o sexo, parecia mecânico, frio. A
verdade era que se amavam, mas a admiração mútua, estava descendo pelo ralo.
De repente, o imprevisível.
Ouviam notícias de uma epidemia que rapidamente, ganhou o status de pandemia.
Estavam perplexos e apavorados , mas a coisa ainda estava lá pela China. George
tinha férias e licenças acumuladas na Universidade e resolveu que viajariam ao
Brasil. Realizariam o sonho de rever parentes, amigas e amigos e estariam mais
longe do vírus que já se imiscuía pela Europa.
Resolveram ficar um mês no
Rio de Janeiro, na casa de Válter, o melhor amigo de George, casado com Diana,
também muito amiga, tanto dele, quanto de Sabrina. Dali estariam perto da casa
dos parentes todos, mas ficariam mais à vontade, ao invés de ir para um hotel
ou para a casa dos pais de um deles.
Estavam felizes demais de
volta ao Brasil. A recepção de Válter e Diana, foi perfeita. Logo começaram as
idas à praia, visitas aos parentes, saídas à noite com amigos. Válter e Diana,
assim como eles, ainda não tinham filhos. Quiseram esperar um pouco, pra curtir
melhor o casamento que já durava quatro anos.
Num curto espaço de tempo, a
perspectiva de passeios, noitadas, viagens e tudo que se planeja em período de
férias, perdera o sentido e tornara-se algo impossível de realizar. As notícias
sobre a chegada do vírus ao Brasil e a incapacidade de grandes países da
Europa, assim como os Estados Unidos de combatê-lo de forma eficaz, minimizando
o número de infectados e mortos ,falharam. Rápidas providências foram tomadas
por governadores e prefeitos de todo o país, no sentido de estimular o
isolamento social, fechamento do comércio, de aeroportos e rodoviárias,
escolas, universidades, enfim, o confinamento da população, passou a ser o
único recurso eficaz, para minimizar o ritmo de infecções que provocariam um
colapso no serviço de saúde do país. Consequentemente, o número de mortos por
falta de atendimento, seria enorme. Mesmo em oposição ao desejo do governo
federal, conseguiu-se manter o isolamento, embora muitos não o respeitem.
Sabrina e George, viram-se
imobilizados de uma hora para outra. Não
voltariam à Espanha, mesmo que fosse permitido, pois a situação por lá já se
encontrava caótica. Mas não poderiam também, ficar saindo do apartamento do casal
amigo, a menos que por algo extremamente necessário. Válter e Diana,
funcionários públicos, concursados, foram dispensados do trabalho e permaneciam
em casa.
Ficaram os quatro em casa,
confinados e buscando alternativas para preencher o tempo. Logo Válter e Diana
perceberam a exacerbada frieza entre o casal amigo. Tão jovens e com tão pouco
tempo de casamento, era muito triste, vê-los assim. Participavam efusivamente
de atividades que envolviam os quatro mas
quando estavam apenas os dois, os anfitriões percebiam a estranheza.
"Together" - Aquarela de Luciane Valença |
A rotina diária de Diana e
Válter era um exemplo de cumplicidade solidária. Quando Diana estava
cozinhando, Válter limpava a casa e assim por diante, em todas as tarefas, sem
que um cobrasse nada do outro. Além disso, pequenas gentilezas recíprocas,
eram frequentes, como levar o café na cama, massagens carinhosas e conversas
estimulantes, quando um deles estava mais desanimado. George observava aquilo
tudo um tanto sem graça, empenhava-se em ajudar o amigo nas tarefas, mas não
raro, Válter pedia que ele auxiliasse
Diana ou Sabrina, no que elas estavam fazendo. Era um
exemplo de homem pró-feminismo e George sentia-se constrangido, por se enxergar
agora tão diferente, no trato com Sabrina. Percebia o quanto era machista em
algumas situações, desatento às
qualidades de Sabrina e egoísta. Sentia que algo estava se transformando dentro
dele e começava a sentir vergonha do homem no qual se transformara nos últimos
tempos. Focado no trabalho, no brilho pessoal, no dinheiro, deixara de lado,
tudo que dizia respeito à mulher com quem se casou e tanto amava.
Percebia também, o olhar de
admiração e carinho de Diana para o marido, enquanto conversavam. O afeto evidente e, muitas
vezes, os pequenos carinhos que acompanhavam essas conversas. Afagos nos
cabelos, um carinho nas mãos e os olhos sempre conectados aos olhos do outro.
Certo dia, Sabrina
conversava com Válter, sobre o andamento de um processo e ele percebeu a
admiração com a qual o amigo a escutava. Sentiu até uma pontinha de ciúmes, mas
percebeu ali, o quanto estava desconectado da mulher maravilhosa, brilhante que
era a sua esposa. Ultimamente, uma reflexão vinha o tempo todo à sua cabeça. “Meu
Deus, como pude ser tão idiota, tão egoísta?”. Tentava se reaproximar com
atitudes desajeitadas, mas havia muito mais a fazer.
- Gente, quem topa um filmezinho,
agora à noite? O tempo tá frio, a gente se joga nos sofás, embaixo do edredom.
Ainda temos um vinho gostoso e eu me proponho a preparar uns petiscos.
A ideia de Valter foi super
aceita. Escolheram o filme, arrumaram tudo e depois de um belo banho, deitaram-se, cada casal em um sofá da sala,
sob um edredom confortável para começar a “sessão de cinema”.
O casal anfitrião, super
aconchegado como sempre, não ficava inibido com a presença do casal amigo,
enquanto George e Sabrina estavam visivelmente constrangidos ali, sob o
edredom.
Válter e Diana tinham um
plano estratégico para “salvar” a relação dos amigos que, eles tinham certeza,
ainda se amavam e muito. Depois de algum tempo de filme e algumas taças de
vinho, começaram a se beijar e trocar carinhos cada vez mais quentes. George e
Sabrina fingiam continuar atentos ao filme, mas perderam totalmente a
concentração e se aconchegavam cada vez mais. Sabrina, deitada no ombro do
marido, deslizava as pontas dos dedos, do seu peito, até o abdômen e ele estava
visivelmente excitado, mas ainda fingiam olhar pro filme.
- Gente, desculpa aí, mas
nós vamos lá pro quarto, outra hora a gente termina o filme.Falou Diana,
grudada ao marido e com um risinho de satisfação no rosto.
Sabrina e George,
entregaram-se a um beijo apaixonado e envolvente, como não acontecia há muito
tempo. O beijo foi só o princípio de carícias, carregadas de desejo e afeto.
Amaram-se como nunca.
A conversa na madrugada, foi
estimulante. George expôs as suas fragilidades, os seus erros e disse tudo,
olhando nos olhos da mulher que aproveitou o momento pra também se penitenciar
por alguns erros. Estavam inteiros e cúmplices. Extremamente apaixonados,
entregaram-se mais uma vez ao amor.
Os dois casais acordaram bem
tarde; a noite foi longa e maravilhosa. Havia um clima saudável no ar, apesar do
confinamento, do vírus e de todos os erros da humanidade. Havia no apartamento agora, quatro pessoas extremamente esperançosas e felizes.
Lia Sena é escritora baiana, tem quatro livros do gênero poesia, publicados, participação em várias Antologias e Revistas eletrônicas. De vez em quando um conto, uma crônica e recentemente, concluiu o seu primeiro romance que sairá em breve. Recebeu o prêmio Sosígenes Costa de Poesia em 2018 e o livro premiado, Na Veia da Palavra, será lançado pela Editus (Editora da Uesc). Integrante do Mulherio das Letras e Articuladora do Mulherio das Letras da Bahia, atualmente é editora adjunta da Revista Ser MulherArte.
Belíssimo conto!
ResponderExcluirMuito obrigada pela leitura e pela apreciação tão importante pra mim, Chris!
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