Dizeres da Terra e do Tempo - 4 poemas de Ivone Galdino

Fotografia por Mdorea


Terra Mãe

Terra cabocla, terra pilada, exaurida terra
que implora por todas as bocas, para não ser vã,
perseguida, derrubada, vilipendiada.
A cabocla que se mira e chora,
a sua lágrima forma os rios, os córregos e os mares.
Que tenta retornar ao ciclo e grita o direito do cio,
desmerecida, por estranhos à sua alcova.
A mulher violentada, possuída sem consentimento.
germinada sem o prazer de ter.
Que frutos podem dar
Filhos abrutalhados, de nomes impronunciáveis,
criados sem o leite que lhes confira a humanidade.
Terra, mãe violentada dos seres da terra,
desafia seus agressores,
quando num último ato de resistência,
faz brotar de seu ventre,
A flor.

Fotografia por Mdorea

Inquilina da Terra


Sou terra
Meus grandes pés fincados à terra
Raízes duplas
entranhadas nela.
Meu corpo, um grosso tronco
alimentado por ela.
Minha copa e cabeça
nas nuvens, ao léu!
Vez em quando, Sou Fogo,
lava ejetada da terra,
dardejando ideias e palavras,
No Alvo.
Inquilina do mundo,
pago taxa alta
para aqui morar,
respirar esse ar,
comer do fruto da terra.
Sou terra,
não pretendo dela
me ausentar,
me alimento, me refaço,
lanço frutos e flores à terra!
E, quando
o ciclo se fechar
meu pobre e desfeito tronco
subproduto, substrato,
abstrato do mundo,
pretende a ela voltar.

Fotografia por Mdorea

Contagem

Preciso te contar tempo,
como é bom tê- lo como aliado.
Vê-lo passar sem correr
sem colher fruto verde no pé,
estancar a palavra na garganta.
Despertar sem ter dormido.
Não que sejas ainda amigo.
Encaneces o cabelo dos filhos
Pões rugas nas frontes inimigas
Esconde os segredos nas memórias
destrói articulações.
Preciso te contar.
Já não conto mais teus segundos
não corro mais atrás de ti
Desacelero nas curvas
não faço regressivas.
Estou dando um tempo a ti Tempo,
de se organizar a mim,
Afinal, a vida toda foi ao contrário.
Sempre o tive
contado, estreito, curto, tomado
cronometrado e até roubado.
Não posso ser tua dona absoluta
pois não és minha criação.
Porém, não sou mais tua escrava
alforriada dos digitais e analógicos,
dos tic tacs e dedos em riste
das sinetas e campainhas de colégios
dos apitos soturnos das fábricas
das badaladas de sinos,
cantares de cucos e aves marias.
Chegadas e partidas
de trens e metrôs
ônibus e bondes antigos.
Embarques corridos
nos gates de aeroportos.
Não te perdi tempo,
nem morri,
nem me perdestes de vista, eu sei.
Só não quero te contar.

Fotografia por Mdorea

Teimosia

Por teimosia nasci
E por ela tenho vivido
Por caminhos, traçados
irrompo
Se fôlego falta,
Volto a respirar
Se a perna cansa
Volto a andar
E quando a desesperança
Insiste em bater
Respondo teimosamente
Depois falo com você
Nesse caminho árido
Da vida
Meu oásis tem sido
A teimosia
Meu Horizonte difuso
Minha terra alvissareira
Meu ponto de partida
Minha raiz, meu destino.
Onde se encontram
a verdade e a falácia.
Num resumo definido,
em fazer surgir
do quase nada
A possibilidade do dia seguinte
E pela insistência
venho construindo
O que um dia suponho
Poderá se chamar milagre.

***

Ivone Galdino nasceu na Cidade de São Paulo. Aprendeu a ler com as pilhas de jornais velhos estocados no porão onde era colocada de castigo. Mais tarde, quando mudaram se para um subúrbio da grande São Paulo, a menina irrequieta foi levada a escrever na escola, para se manter ocupada.  Desses percalços, dois hábitos a acompanharam. O de ler e de escrever. Muito embora os caminhos da sobrevivência não tenham sido trilhados na literatura, dela nunca se separou. Seus relatórios técnicos, repletos de poesia insidiosa, instruíram processos judiciais, relatando além da realidade, a sublimação. Inspirada em sua musa Cora Coralina despeja se numa arrebentação, que pode ser tardia, porém, contínua e caudalosa.






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