Minicontos de Quarentena - por Sonia Nabarrete

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Cabelo

Combinou com a cabeleireira: tão logo terminasse a quarentena, ela iria ao salão fazer alisamento para “dar um jeito” em seu cabelo afro. Odiava o cabelo, mas não poderia se aventurar sozinha ao procedimento. Foram meses de espera. Para se expor, nas poucas vezes em que precisou ir ao mercado ou à farmácia, usava um turbante. O recurso também era usado para participar de reuniões virtuais ou chamadas de vídeo.
Ao final da quarentena, a cabeleireira ligou para propor um horário de atendimento. Ela olhou-se no espelho e descobriu uma linda mulher. O cabelo havia crescido e, com ele, sua autoestima. Confirmou o horário, mas apenas para uma hidratação.



Pablo Picasso


Lembrancinha

Anotou o endereço de entrega, pagou a taxa, já incluindo a gorjeta, e explicou ao motoboy que era um presente para o namorado, na verdade, uma lembrancinha.
— Posso saber o que é?
— Um perfume.
Ele achou que o pacote estava leve demais para ser um perfume e ficou encafifado. “E se esta velha estiver me fazendo de mula e isto aqui for droga?”
O velhinho recebeu a encomenda com surpresa. Dentro de casa, higienizou a embalagem e só então abriu o pacote. Dentro de um saco plástico, uma calcinha dela, devidamente usada, que ele cheirou extasiado.

"O Beijo na Cama", de Henri De Toulouse-Lautrec

Marido


Não sabia o que era o pior da quarentena: ficar longe do amante ou ficar o tempo todo com o marido. Nos primeiros dias, controlou-se para não cometer um homicídio, irritada com a presença daquele que um dia amou. Depois foi ficando deprimida com saudade do outro. Sem ter o que fazer, começaram a ver velhas fotos, registros de um tempo feliz, de quando os filhos, agora casados, eram crianças. Dividiram a cozinha preparando a comida. Tomaram muito vinho e tiveram tempo para conversar. Treparam como se não houvesse amanhã. Ao final da quarentena, avisou ao amante que não poderia encontrá-lo: estava com dor de cabeça.

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Namoro

Ele tomou um viagra. Ela se lubrificou com muita vaselina. Ele achou que ela estava linda de batom vermelho, contrastando com os cabelos brancos, e excitou-se com o sorriso safado. Ela percebeu que ele havia se preparado: os pelos do nariz e das orelhas estavam aparados. Ambos imaginaram que o outro deveria estar cheiroso. E começaram a sacanagem virtual, cada um em sua casa. Foi bom para os dois.



Leonid Afremov 

Bolero

Conheceram-se em um baile de terceira idade. Conversaram, descobriram afinidades, dançaram boleros de rosto colado e aceitaram a sugestão da canção “Béssame mucho”.  Ela sentiu uma umidade entre as pernas e não era incontinência urinária. Ele propôs que fossem para um lugar mais tranquilo. Em outros tempos, teria ido, perdeu a conta dos parceiros sexuais eventuais que teve. Mas quis que com ele fosse mais que sexo. Marcariam um novo encontro. Não deu tempo. Agora, em isolamento social, ligou o vibrador e decidiu que não pensaria em George Clooney ou Antonio Bandeiras. “Hoje o homenageado é você, Antenor”.

***



Paulista de São Caetano do Sul, Sonia Nabarrete é jornalista profissional e atualmente trabalha como freelancer na produção e revisão de textos. É autora da novela Eretos, de Contos Safadinhos e do romance Abusada, além de ter participado de várias antologias, de contos e poemas, no Brasil e em Portugal. Sua escrita é marcada por erotismo, sob olhar feminino e feminista, e um toque de humor. Foi selecionada cinco vezes para a coletânea do Concurso de Microcontos do Salão de Humor de Piracicaba.



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