Resenha - comentário afetivo - do livro QUARENTA DIAS, de Maria Valéria Rezende
QUARENTA DIAS DEPOIS
por Nic Cardeal
Preciso confessar. Sofro de um problema muito grave. Não sei ler livros sem marcar, sublinhar, rabiscar. Sinto que os leio com maior atenção e profundidade quando assim procedo. É como se eu tivesse olhos nas pontas dos dedos, do lápis, da caneta. Parece que deste modo consigo que as palavras fiquem tatuadas na alma. Só assim é que posso dizer que bebi um livro por inteiro!
Hoje escrevo sobre o livro QUARENTA DIAS, de MARIA VALÉRIA REZENDE. Eu o li duas vezes. Ele está todo marcado, folha por folha, página por página. Por isso tenho certeza de que ficou todo tatuado na minha alma. Por que precisei lê-lo duas vezes? Não precisei! Quis muito! Viciei! Quis ler. Quis ler de novo. Muito. Só assim pude obter energia pra seguir Alice em sua (ultra, mega) maratona de quarenta dias! Não, não podia deixá-la ir sozinha. Mesmo que ela nem soubesse que eu estava lá todo o tempo. Mal sabia ela que até me sentei na sua velha cadeira de balanço austríaca, de palhinha gasta escondida por uma almofada de ponto cruz, herança de sua avó, pouco antes de ser levada do seu apartamento de João Pessoa! E que eu vi o caderno da Barbie ser colocado na sua bagagem, rumo a Porto Alegre... 'Tchau, Alice! Boa viagem!'...
Alice achou que ninguém leria tudo o que ela escreveu no caderno da Barbie: "Ninguém vai ler o que escrevo, mas escrevo". Sinto dizer, Alice, mas eu li...tudinho... duas vezes seguidas... Da primeira, fiquei meio esquecida, porque foram tantas as tuas aventuras, Alice, que quando terminei fiquei sem fôlego, cansada, precisando de muita água, precisando de mais páginas pra serem lidas... Por isso fechei o livro, voltei ao começo e reiniciei a leitura... folha por folha, página por página. Nessa segunda 'viagem' contigo, pelas ruas, avenidas, ladeiras, noites dormidas na rodoviária de Porto Alegre, em bancos de praça, no pronto-socorro, na casa da Lola (ah, queria mesmo te perguntar, Alice, qual foi a sensação de dormir em uma cama de livros?), fiquei mais à vontade e consegui te acompanhar com mais atenção. Mas, que susto tu me deste da segunda vez, Alice!!! Eu já tinha esquecido que no fim da tua aventura tu tiveste que encarar a morte tão de perto, cara a cara, e dei um grito quando tu iluminaste com a luz do celular os olhos esbugalhados e vazios daquele sujeito caído no meio do mato n'algum lugar perdido de Porto Alegre... Tu saíste correndo ladeira abaixo e eu saí correndo com meus olhos, bebendo o último capítulo de um só gole, pra terminar logo a tua (minha) agonia, pra poder voltar de vez pro teu novo apartamento, sã e salva, e continuar tua prosa com a Barbie, a tua amiga surda, cega e muda, que só te olhava sempre do mesmo jeito, vendo a vida cor-de-rosa...
Sim, Alice, tu precisas acreditar em mim: eu te li inteira, por duas vezes seguidas, pra poder ter certeza mesmo que tu não achaste o Cícero... Preciso confessar. Estou desconsolada porque tu não encontraste o Cícero... Bem que me avisaste, Alice: "...andava só pra não voltar, eu, rebelde peão de xadrez, a correr atrás de um peão de obra imaginário, a ouvir histórias de gente quase reduzida a corpo e dor, quase"...
"Quarenta Dias" de liberdade e desespero. Tu ficaste bem, Alice, mesmo sem conseguir saber do paradeiro do Cícero?
E Norinha, já voltou de viagem?
(Recomendo muitíssimo a leitura de 'Quarenta Dias', de Maria Valéria Rezende, Rio de Janeiro: Editora Alfaguara, 2014).
MARIA VALÉRIA REZENDE nasceu em Santos/SP, onde viveu até os dezoito anos. Em 1965 entrou para a Congregação de Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho.
Dedicou-se sempre à educação popular, primeiro na periferia de São Paulo e, a partir de 1972, no Nordeste, vivendo em Pernambuco e depois na Paraíba, no meio rural até 1988 e, desde então, em João Pessoa, onde está até hoje.
Em 2001 lançou seu primeiro livro de ficção, 'Vasto mundo'. É também autora de 'O voo da guará vermelha', 'Modo de apanhar pássaros a mão', 'Ouro dentro da cabeça ', 'Histórias daqui e d'acolá', 'Hai-quintal: haicais descobertos no quintal', 'Quarenta dias' (vencedor do Prêmio Jabuti 2015), 'A face serena', 'Outros cantos' (vencedor dos Prêmios Casa de las Américas, Jabuti 2016 e São Paulo), e 'Carta à rainha louca', entre outros.
Dedicou-se sempre à educação popular, primeiro na periferia de São Paulo e, a partir de 1972, no Nordeste, vivendo em Pernambuco e depois na Paraíba, no meio rural até 1988 e, desde então, em João Pessoa, onde está até hoje.
Em 2001 lançou seu primeiro livro de ficção, 'Vasto mundo'. É também autora de 'O voo da guará vermelha', 'Modo de apanhar pássaros a mão', 'Ouro dentro da cabeça ', 'Histórias daqui e d'acolá', 'Hai-quintal: haicais descobertos no quintal', 'Quarenta dias' (vencedor do Prêmio Jabuti 2015), 'A face serena', 'Outros cantos' (vencedor dos Prêmios Casa de las Américas, Jabuti 2016 e São Paulo), e 'Carta à rainha louca', entre outros.
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