Em tempos de pandemia e confinamento, o lirismo de Kátia Borges / uma crônica
Fotografia por Marcelo Sena |
Desde
que começamos a contar os mortos
Nesses
dias de distanciamento, tenho notado a ausência dos pássaros. Chego à varanda
do apartamento e nenhum deles aparece para a saudação costumeira. Antes que
começasse a pandemia, pousavam em bando no parapeito, como se quisessem puxar
assunto. Vem de lá que te conto, parecia gritar uma dessas cambacicas
impacientes. Mal aproximava o ouvido e ela mergulhava em queda livre.
Disse-que-disse
de passarinhos só pode ser canto, pontificam os ornitólogos. “Essa manhã
sobrevoei o Oceano”, talvez zombem de mim em uníssono. A varanda do apartamento
tem sido o limite do meu contato com a natureza nesses dias de distanciamento.
Poderia argumentar com eles sobre a plasticidade da aerodinâmica, caso me
dessem a palavra. Mas as aves têm mais com que se ocupar.
Os
sabiás-laranjeira, por exemplo, andam insones há muito tempo. Desde 2013,
trocam o dia pela noite. De madrugada, nas grandes cidades, decidem cantar. Me
junto a eles em silêncio, após o pesadelo diário no telejornal. Desde que
começamos a contar os mortos, nunca mais o sono por inteiro. Nunca mais os
pássaros fofoqueiros no ritual da manhã. Logo agora, justo agora, esse vazio na
selva de prédios.
Fotografia por Marcelo Sena |
Deve
haver uma razão para o sumiço das aves, penso. Ando obcecada em dar sentido às
coisas. Invento uma lógica improvável para os acontecimentos. E é possível que
seja eu a descobrir a cura, de tanto que a espero. Avisto ao longe um
sanhaço-cinzento com ares de não vou lá. Olho para ele, aceno. Sinto que tem
receio. Quem sou eu para duvidar do medo? Eu que não consigo entender um
sentimento.
Ponho
a leveza da espera no cuidado com as plantas. De seus vasos, contemplam os
movimentos da casa. Nunca estiveram tão solidárias. Perdi a conta de quantas
vezes me viram chorar. Trago água fresca, promovemos uma pequena festa e, às
vezes, rimos juntas. É mesmo o fim do mundo, essa conversa, e como irrita a
mania de enxergar lirismo em tudo. Pedra é pedra é pedra é pedra é pedra.
Impossível
imaginar se há agora algum futuro maquinando a aurora. Algum verso respirando
sob escombros. Mais uma madrugada de olhos abertos, ouvidos atentos, insônia de
pássaro. Alguém pigarreia alto no outro apartamento. Lembro meu pai chegando em
casa, noite alta, do trabalho. E a sua chegada anunciada pelo som do pigarro. E,
então, de súbito, escuto um barulho na varanda: ruflar de asas.
Fotografia por Sora Maia |
Kátia Borges é autora dos livros De volta à caixa de abelhas (As letras da Bahia, 2002), Uma balada para Janis (P55, 2009), Ticket Zen (Escrituras, 2010), Escorpião Amarelo (P55, 2012), São Selvagem (P55, 2014) e O exercício da distração (Penalux, 2017). Tem poemas incluídos nas coletâneas Roteiro da Poesia Brasileira, anos 2000 (Global, 2009), Traversée d’Océans – Voix poétiques de Bretagne et de Bahia (Éditions Lanore, 2012), Autores Baianos, um Panorama (P55, 2013) e na Mini-Anthology of Brazilian Poetry (Placitas: Malpais Rewiew, 2013). Escreve crônicas semanais no jornal Correio desde agosto de 2018.
Insônia de pássaro! Quanta delicadeza neste texto primoroso. Como é bela a sua alma Kátia Borges! Parabéns! Amei a sua escrita.
ResponderExcluir