O corte profundo de Lindevania Martins / Um conto
Fotografia por Marcel Caram |
Voo noturno
por Lindevania Martins
Heraldo deu uma última baforada e
jogou a bituca de cigarro em cima dos restos de comida espalhados pelo chão.
Observou suas mãos ossudas e vazias, os dedos com pontos de sujeira sob as
unhas. Uniu as mãos e estalou as juntas. Agora, já podia trabalhar. Levantou o
braço inerte do filho, que repousava sobre seu ventre de menino, e o colocou de
lado. O caminho estava livre. Pegou uma gilete meio enferrujada e a enfiou na
pele da barriga magra de Tonho, na qual podiam se contar os ossos. Cuspiu sobre
o amontoado de garrafas de cerveja, sobre os cacos de vidro no chão imundo,
antes de murmurar:
— Ele tem que sentir na pele
como dói ser destruído. Antes que a destruição de fato ocorra.
Estava quente e algumas moscam zuniam
em volta deles. Rita, a mãe do menino de sete anos, se afastou do fogareiro
onde o companheiro aquecera o crack e tomou mais um pouco da cerveja morna,
bebendo do gargalo:
— Você não tá exagerando? Acho que ele
desmaiou.
— Melhor. Assim ele não se mexe e estraga
o desenho.
Ela riu sem saber de quê e se jogou no
sofá puído, as espumas saltando, enquanto observava os cortes enviesados que o
homem fazia no barriga do filho:
—
Não sabia que você era tatuador.
—
Nem eu. Mas a pedra faz a gente descobrir talentos.
— Foi crack que você usou?
—
Não. Hoje consegui coisa fina. Coisa de bacana.
E ele interrompeu os cortes para
mostrar a ela umas bolinhas coloridas:
—
Te daria algumas. Se não tivesse tão pouco.
Ele voltou a se entreter com a
tatuagem. Rita se remexeu no sofá, esticou o pé e empurrou o menino com
suavidade. O homem reclamou:
— Para com isso, mulher! Vai estragar
o desenho!
Ela se recolheu novamente. Se o filho
não reagia com os cortes da gilete, iria reagir com os toques do seu pé?
Perguntou ao homem:
—
Ele tá muito tempo parado. Será que morreu?
— Não seja boba. Claro que não. O
moleque é forte. Eu apanhava do meu pai muito mais do que ele apanha de mim.
Nunca morri. Por que ele iria morrer?
Ela desceu do sofá e se jogou ao chão,
ao lado do menino, o corpo todo na horizontal, a cabeça apoiada no braço. O
companheiro devia ter razão. Observou os cortes irregulares, o sangue de um
vermelho intenso. Ainda não conseguia entender o que era aquilo:
— Que desenho é esse?
—
O que você imagina?
—
Não sei.
— É uma borboleta. Não parece?
— Talvez.
—
Um dia, quero desenhar algo que possa ser qualquer coisa que a gente
sonhar.
A mulher coçou a cabeça:
— Qualquer coisa?
— Diz aí um sonho teu.
— Não tenho sonhos.
Depois apalpou o menino:
— Tá frio!
O homem não ouviu e continuou:
—
Nenhum sonho? Nem quando era criança?
Ela arqueou as sobrancelhas, como se tentasse lembrar de algo
e falou numa voz insegura:
— O menino era meu sonho. Ser mãe pra alguém me respeitar.
— Meu sonho era voar. Nunca quis ser gente, mas algo com
asas.
Um movimento atraiu a
atenção dela:
— A barriga do menino tá tremendo, percebeu?
— Não. O moleque continua imóvel. Duro que nem estátua de
praça.
— Será que ele tá sonhando?
— Tá colaborando. Feliz porque vai ter uma obra de arte
desenhada bem na barriga dele!
Continuou manipulando a gilete, ora cortando a pele, ora
cortando o vazio. De repente, foi como se o ar lhe faltasse e, no susto,
Heraldo atirou a gilete longe:
— Percebi, Rita!
— Percebeu o quê?
— A barriga do moleque! Se mexeu como se fosse um bicho. Algo
grande vai acontecer. Você não sente?
Ela fechou os olhos e esperou. Não sentia nada. Abriu as
pálpebras depois do que lhe apareceu muito tempo, sobressaltada com os gritos
do companheiro:
— Aconteceu, Rita! Olha! Olha!
A princípio, ela não viu nada. Depois também gritou:
— Eu vejo! Eu vejo!
Olhos arregalados, correu para sentar
ao lado do homem. Muito juntos, mãos entrelaçadas, assistiram a tudo
hipnotizados e felizes. Uma borboleta sangrenta se destacou da carne magra do menino,
bateu asas e alçou voo para a janela do casebre, desaparecendo na escuridão da
noite.
¨¨¨¨
Lindevania Martins nasceu em Pinheiro-MA. É graduada em Direito com Mestrado em Cultura e Sociedade. Ex-delegada de polícia, é defensora pública atuando no Núcleo Especializado de Defesa da Mulher e População LGBT da Defensoria maranhense. Contista e poeta, é autora dos livros de contos “Anônimos” (Prefeitura de São Luís, 2003), “Zona de Desconforto” (Editora Benfazeja, 2018) e “Longe de Mim” (Sangre Editorial, 2019). Autora do livro de poesia “Fora dos Trilhos” (Ed. Venas Abiertas, 2019).
Textos sempre fortes, reflexivos e pulsantes.Lindevânia, sua escrita é latente!
ResponderExcluirMuito obrigada, Jéssica!
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