Uma colher de chá pra ele - Geraldo Lavigne
| uma colher de chá pra ele - 02|
- Seis poemas tocantes do poeta baiano Geraldo Lavigne -
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meu caso é grave, doutor?
comecei sofrendo de poesia aguda.
não tratei.
não tratei.
desenvolvi sensibilidade às palavras,
sofri de conceitos e verbetes,
senti alívio usando metáforas
e outras figuras de linguagem.
sofri de conceitos e verbetes,
senti alívio usando metáforas
e outras figuras de linguagem.
eu inventava realidades
no labirinto do lirismo.
no labirinto do lirismo.
fiz alguns exames,
guardei papéis nos bolsos,
portei caneta e lancei-me ao acaso.
guardei papéis nos bolsos,
portei caneta e lancei-me ao acaso.
estava na poesia pelo escapismo
e expelia versos rabiscados.
e expelia versos rabiscados.
os laudos foram claros
e, depois do estadiamento,
recebi o diagnóstico
: sofro de poesia crônica.
e, depois do estadiamento,
recebi o diagnóstico
: sofro de poesia crônica.
vejo a curva da mobília repetir o universo,
um palhaço riscado dançando
nas rachaduras da cerâmica
e um pássaro exibir seu voo estático.
apanho água de lago na pia e
ouço cachoeiras no chuveiro.
dissocio corpo, mente e alma.
enxergo as moléculas do ar
e o espaço que ocupam.
capto a vida das coisas inanimadas
e reanimo a morte dos seres vivos.
toco a força dos trabalhos, não a coisa que trabalha.
toco a dor, não a ferida.
sinto a espessura do tempo, o peso da nuvem.
e recentemente vi a luz fazer uma curva
em direção ao amor.
um palhaço riscado dançando
nas rachaduras da cerâmica
e um pássaro exibir seu voo estático.
apanho água de lago na pia e
ouço cachoeiras no chuveiro.
dissocio corpo, mente e alma.
enxergo as moléculas do ar
e o espaço que ocupam.
capto a vida das coisas inanimadas
e reanimo a morte dos seres vivos.
toco a força dos trabalhos, não a coisa que trabalha.
toco a dor, não a ferida.
sinto a espessura do tempo, o peso da nuvem.
e recentemente vi a luz fazer uma curva
em direção ao amor.
nada é mais real, senão a poesia.
descobri
que é o próprio mal que cura:
hoje trato-me com
poesia nascitura.
que é o próprio mal que cura:
hoje trato-me com
poesia nascitura.
Christian Skloje |
outros pulmões
deitado no chão,
sou cisco na relva.
tempo frio,
sombra da árvore.
olho pra cima,
estou dentro de um pulmão
: a copa da amendoeira
se abre no ar
confundo tronco com traqueia,
galhos com brônquios,
folhas com alvéolos.
deitado na sombra da árvore
sou cisco no pulmão do mundo
Adam Pekalski |
quero a poesia não edificada,
que transita na campina da planície inabitada
que transita na campina da planície inabitada
quero a poesia que anda a pé,
beija os loucos e afaga os tortos.
beija os loucos e afaga os tortos.
– a lua que ninguém mais nota
– o lusco-fusco que a cidade ignora
– o lusco-fusco que a cidade ignora
quero a poesia marginalizada,
ultrajada,
mas não contaminada pela vilania.
ultrajada,
mas não contaminada pela vilania.
quero a poesia sem sucesso,
a poesia que nega o ego.
a poesia que nega o ego.
– a semente que a árvore lança ao vento
– a flor que desabrocha imaculada na lama
– a flor que desabrocha imaculada na lama
quero a poesia da infância,
sem regras,
métrica,ou rima.
a poesia que desatina.
– o peão que sempre gira a última dança
– a pipa que não teme o céu, a chuva ou o vento
– a pipa que não teme o céu, a chuva ou o vento
Rafal Olbinski |
prevenção
a mágoa não entupirá as minhas coronárias,
não punirá o meu coração.
o mal, eu diluo e excreto.
com o perdão, o infarto rejeito.
quem quiser que ponha chumbo em seu peito.
eu não.
Marcel Caram |
adeus, Vênus
eu perdi o oeste
desde quando
a antena de transmissão
instalada na tapera
costurou Vênus
na malha celeste
desde quando
a antena de transmissão
instalada na tapera
costurou Vênus
na malha celeste
erro às tardes e noites
iludido pelo falso astro
– embuste luminoso
preso à haste apagada
iludido pelo falso astro
– embuste luminoso
preso à haste apagada
a lâmpada que alerta os aviadores
impõe-me o triste fardo de inseto desorientado
diante da noite maculada
impõe-me o triste fardo de inseto desorientado
diante da noite maculada
Igor Morski. |
o despertar do ódio
o ódio perdeu a mordaça
atrás da tela
ele agora tem voz alta
no meio digital
realidade virtual
que desvirtua
o real
– e que o expõe, também
associal, em rede,
o ódio é mais
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Geraldo Lavigne de Lemos é advogado e poeta, membro da Academia de Letras de Ilhéus, autor de seis livros. Publicou nas revistas Revista da Academia de Letras da Bahia, Diversos Afins, Mallarmargens, Subversa, InComunidade e Fuxico, além dos jornais Diário de Ilhéus (Ilhéus/BA) e A Gazeta (Vitória/ES). Foi curador do II Festival Literário de Ilhéus, parecerista ad hoc da Editus e membro de comissão julgadora de concursos literários.
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