O conto muito interessante de Eliana Bueno Ribeiro

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Rosas que falam

por Eliana Bueno-Ribeiro

Um dia, tia Cotinha, o mais amado membro de nossa, à época,  extensa família, pediu a meus pais que eu a acompanhasse à casa de uma amiga, em São Paulo. Queria comprar um quadro verdadeiro, um original, para sua recém-comprada e linda casa. Naquela época uma senhora não viajava sozinha.Eu nunca tinha saído de Italva e se tivesse ido à lua não teria voltado mais impressionada. A casa da amiga de minha tia,era refinadíssima ou ao menos assim me pareceu. E mais ainda a de sua irmã. Nas casas de ambas , as paredes eram cobertas por quadros : óleos, guaches, aquarelas. Miriam e Mirta nos faziam distinguir as diferentes técnicas  e, em conversas que varavam a noite, nos explicaram os critérios de valoração de cada uma. Amantes das artes plásticas, elas conheciam pessoalmente  diversos pintores e  frequentavam ateliês e exposições.
Na galeria chique   a que nos dirigimos para a compra, minha tia pedia minha opinião quanto ao tema  a escolher- paisagens, flores, composições com figuras humanas ( nada de nus, of course) mas o marchand ja tinha praticamente escolhido por ela: sobre uma mesa coberta por um tecido tipo tapeçaria, rosas de cabo longo mergulhadas em quatro dedos d’água num vaso redondo de cristal sextavado . Na parede em  frente, um espelho refletia o conjunto. Ao fundo, uma réstia de luz entrava por uma porta meio fechada por um reposteiro. Um motivo intemporal, segundo o galerista. E que víssemos como o cristal se destacava na água,reparássemos nas transparências e sobretudo nos reflexos, era a especialidade da pintora , premiada em vários salões. E que começara a pintar já idosa, sua produção é pequena, sorria ele,depois de sua morte os preços vão explodir!
Minha tia me fez prometer que não contaria a tio Alberto  quanto ela pagara pelo quadro, dez vezes mais que o teto que tinham estabelecido. As rosas foram enfeitar sua sala e mexer com minha cabeça: -Então ainda era possível começar! Minha tenacidade deslumbrava meus professores, veio o primeiro salão, depois o segundo, me especializei em rosas, símbolo do amor, da juventude, da arte, da vida e – sobretudo -, do tempo que desliza entre nossos dedos. No meu cartão de visitas mandei gravar a frase horaciana «  carpe diem quam minimum credula postero », assim mesmo em latim, dava mais cachet. Minhas rosas vendiam como pãezinhos quentes.

Quando tia Cotinha morreu, sua filha me deu o quadro, a pintura clássica nao lhe interessava e tia Cotinha era um pouco também minha mãe.  Quando resolvi, já tarde e fora de hora, levar a sério minha profissão, tirei-o de meu quarto e pendurei-o  ali, a principal parede do ateliê. É a primeira coisa que se vê ao entrar, o ponto de partida de minha carreira.  A história de minhas rosas rende conversas interessantes com clientes, marchands e sobretudo com jornalistas que precisam de matéria e entendem lhufas de arte. Minha namorada, que é também minha agente, me explicou que hoje um artista não vende apenas sua arte. O público exige suas opiniões,sentimentos, sua história familiar. De Italva a São Paulo, a viagem de trem, as casas das amigas paulistas e suas coleções de arte, a primeira galeria visitada, a descoberta da luz no cristal, na água,no espelho, a descoberta de minha vocação, o abandono do emprego no Grupo Escolar, essa história tem de ir como brinde nos quadros negociados. Como um talismã de família deixarei as rosas de tia Cotinha a minha filha mais velha, que já é professora de pintura da UFRJ. As minhas são vendidas  até na Colômbia, terra das belas rosas, e ano que vem vou expô--las no Louvre, numa coletiva de mulheres latino-americanas intitulada « Rosas do Novo Mundo ».

Devo confessar que vendi o quadro de tia Cotinha logo depois de sua morte. Seu preço tinha de fato explodido. E eu estava voltando de Barcelona, onde ficara um ano no ateliê de um pintor famoso, perto da praça do Pi,  e onde gastara toda a minha reserva, deixando ainda um mar de dívidas. Não tinha nem para comer. Sozinha no mundo, sem niguém a quem  pedir nada nem a quem deixar alguma coisa. Precisei, pronto, tia Cotinha me perdoaria, era uma mulher a favor da vida. Vendi a um catalão que retornaria imediatamente para a Europa e queria  levá-lo para a mulher, como lembrança de sua estada na América do Sul. A seu pedido,raspei cuidadosamente a assinatura pois, pintor de domingo, ele queria assiná-lo. Esse aí é de minha lavra. Igualzinho,ninguém diria uma cópia, afinal, de tanto contemplar o original eu conhecia cada uma de suas pinceladas. Cheguei a pensar em dar meu toque, quebrar a solidão das flores acrescentando umas figuras, um cachorro no tapete, talvez uma anã. Mas depois de refletir decidi deixar assim. Não resisti no entanto a pintar essa mão
que, discretamente,afasta, de fora do quadro, o reposteiro, só quatro dedos se destacando no veludo. E, atrás do quadro, deixei uma pequena marca autoral, perceptível apenas aos pesquisadores do futuro. É preciso cultivar a esperança, Horácio não tem completa razão, afinal, quem é que tem ?

Entre nós, esse quadro é fruto de um trabalho coletivo no curso livre que dou às segundas-feiras numa ong  em Nilópolis ,  e que  é, a bem dizer, minha única entrada fixa além de, hoje em dia, constituir praticamente toda a minha vida social.  Ensino história da arte,  diversidade de materiais e, claro, pintura. Sua composição foi discutida por todos os alunos depois de muita leitura e análise de obras-primas, sob minha condução. Para chegar ao esboço definitivo tive de  usar toda a minha capacidade política e cortar muita falsa boa ideia, como a do aluno que queria que dois macacos segurassem o espelho, que seria encimado por uma caveira,  ou a da aluna, linda, por sinal, que queria pôr no quadro, à esquerda, o pintor pintando as rosas, e seu cavalete. Difícil convencer as pessoas do valor da simplicidade.Homogeneizei os diferentes traços - cada rosa tem um autor,por vezes mais de um, e os talentos são variados - ,mas não muito. Afinal, o caráter de trabalho de ateliê, como o dos grandes mestres medievais e renascentistas, tem de aparecer, dá um toque de originalidade à composição e a minha carreira. A arte de nosso século será coletiva ou não será e meu trabalho já começa a ser reconhecido por seu viés pedagógico e político de quebra da aura etcetera e tal.

Para usar de franqueza, esse quadro achei no fundo de uma loja de móveis usados da rua do Lavradio, onde tinha ido justamente oferecer algumas obras das que vendo no calçadão de Copacabana.  O movimento anda fraco, só turistas pobres e os poucos  que se interessam por arte  querem  ver favela, samba, capoeira, essas coisas. Estava muito sujo e com algumas imperfeições mesmo de traço.  Um exercício  de algum amador. Limpei-o, estilizei os erros mais flagrantes e acrescentei a figura masculina  abrindo o reposteiro, um clin d’oeil não sei bem a quem. O almofadado da porta foi ideia  de minha neta adolescente, que fez também a moldura em decapé, uma forma de trazê-la para o ateliê e reaproximar a família. Os tempos favorecem a dispersão, é preciso resistir à barbárie e para tanto nada melhor que o esforço e a disciplina exigidos pela arte. Não ficou  bem nessa parede ? Acabei de pendurá-lo. Uma surpresa para minha namorada, que vai passar para um café.

De fato,

***


Eliana Bueno Ribeiro nasceu em Niterói, Rio de Janeiro. Professora de literatura, ensaísta e tradutora, publicou pela Editora Paulinas, São Paulo, Santo Antonio ( 2012) e uma tradução dos Contos de Perrault( 2016). Para a mesma editora prepara " As irmãs de Perrault", uma reunião de contos de fadas franceses do século XVII escritos por mulheres.

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