Gabriel Moreno
Desmaios
[por Camila Pina]
A
primeira vez em que o amor entrou em minha casa, ele veio cobrar uma explicação
para todo o meu escárnio, quis me mostrar que eu não era imune e que eu seria
patética se ele assim o quisesse. Foi o meu mais profundo desmaio, comparo-o a
um coma. Não desmaiei de imediato, afinal encarei a ameaça com meu tom
zombeteiro de costume. Nem mesmo reconheci o instrumento por ele utilizado para
me destruir. Acreditei que racionalmente tinha escolhido uma distração para
minha vida e estabelecido regras para o tempo em que faria parte da minha
rotina. Não aceitaria que invadisse meu espaço e provocasse alterações
indesejáveis. Diverti-me, senti-me superior até que me experimentei
ligeiramente tonta. Comecei a ter pequenas perdas de consciência. Não me
preocupei nem mesmo quando os desmaios se tornaram rotineiros. Desmaiar era
intenso e viciante. Gradativamente fui perdendo minhas características, tudo o
que me definia foi se tornando mais distante. Decidi, inconscientemente,
guardar minha essência em um potinho.
Passei a viver quase um contínuo transe. Não me importava de ter sido
vencida. Ser patética era deslumbrante. Às vezes, sentia saudade de mim e ia me
visitar no potinho. Eu me olhava, pensava em me resgatar, mas desmaiar era tão
mais inebriante, e eu desmaiava. Desmaiei, desmaiei, desmaiei e entrei em coma.
O amor, então, veio ter uma conversa comigo. Disse ter me ensinado a ser
patética, que eu era pateticamente perfeita. Ele já podia me deixar, precisava
espalhar patetismo pelas outras casas. Discordei. Estávamos tão bem juntos. Ele
foi embora. Houve uma brisa, leve, mas avassaladora. Meu potinho quebrou, minha
essência se espalhou. A consciência começou a me rondar. Antes que saísse
completamente do coma, tomei uma decisão desesperada. Eu seqüestraria o amor. Essa
foi a segunda vez que o amor veio me visitar. Sua entrada foi cheia de encanto.
Preparei tudo, comprei rosas e botei o mais belo vestido. Ele me mimou e me
garantiu deliciosos desmaios. Procurei um novo potinho para guardar minha
essência novamente, ela não combinava mais comigo. Ela era perigosa, tóxica.
Achei um potinho, não era resistente como o outro, mas quebraria o galho. Ele
tinha um furo, pequeno, insignificante. Nada passaria por ali. Acreditei.
Depois de um lapso temporal recheado de intensas perdas de consciência, o amor
pediu para conversar comigo. Eu não tinha porque negar, ele estava sendo um
ótimo prisioneiro, até parecia que estava ali por vontade própria. O amor
queria negociar. Deixei claro, liberdade estava fora de cogitação. Ele disse
que não queria me deixar, mas que precisava sair às vezes, ele voltaria no fim
do dia. Deixaria um pedaço de si como garantia. Regime semiaberto. Sei não.
Estar ao meu lado sem provocar desmaios era o mesmo que não estar. Bom, a greve
de desmaios do amor me convenceu a aceitar sua exigência. No início, quando
estava em casa, ele me mantinha quase sempre em transe. Ah, o amor...inebriante
que só. Ele nunca ia muito longe e sempre voltava logo, Lentamente foi mudando
de postura, mas eu não notei. Não notei como sua presença se tornava cada vez
mais rara. Não notei também o vazamento no potinho. O furinho desprezado faria
um estrago imenso na minha escolhida inconsciência. Cada vez que acordava de um
desmaio, e o amor ia dar um dos seus prolongados passeios, me sentia mais eu.
Estranho. Fui olhar o potinho, e notei que ele tava pela metade, onde estaria a
outra parte? Relutei em acreditar, mas ficou claro, indiscutivelmente, que eu
tinha me infiltrado em mim. Eu não conseguia parar aqui, cada dia o potinho
ficava mais vazio, e eu mais cheia de mim. E o amor não estava ali. O mais
triste é que quando ele voltava para casa não me provocava mais desmaios. Ele
percebeu meu desinteresse, entendeu que eu estava voltando a ser eu mesma. E o
amor é assim, quando se sente desprezado, ele decide mostrar quem manda. Ele
queria me subjugar novamente, eu até queria ser subjugada, mas eu não conseguia
mais me abandonar. O amor me pediu um tempo, disse que faria uma longa viagem.
Tudo bem. Ele não tinha mais importância na minha vida. Minha essência tava
modificada, eu tinha aprendido a respeitá-lo, a gostar de ser patética, e me
deliciar desmaiando. Eu ainda tinha reduções de consciência, não a perdia por
completo, mas eu estava bem. Um dia o amor telefonou, e disse que estava
retornando. Recebi, como um velho amigo, de quem você tem as melhores
lembranças, mas com a certeza de que ele não terá mais nenhum espaço na sua
rotina atual. O amor chegou renovado, lindo, e com um brilho de insanidade.
Sentamos e conversamos, perguntei o que ele andava fazendo, ele havia se
espalhado por aí, enlouquecido alguns, maltratado outros, matado uns mais
fracos, mas garantido desmaios delirantes a todos. Ele perguntou como eu andava
sem ele e, o mais importante, com quem eu estava, eu expliquei que tava bem e
que meu novo acompanhante era um doce, chamava-se tranquilidade, expliquei o
quanto éramos amigos, um nunca fazia o outro perder a compostura. Ele disse que
foi ótimo me encontrar, mas que já precisava ir. Eu pedi para ele ficar mais um
pouco, só para matar a saudade. Ele disse que não tinha espaço. Eu conversei
com a tranquilidade, ela era tão compreensiva, passaria um tempo fora enquanto
eu me distraia um pouco com o amor. Como era de costume, ela concordou, mas me
alertou “o amor ta diferente, com novos adereços, mas continua o mesmo, ele vai
te machucar, te enlouquecer, te constranger e eu não sei se poderei voltar.”
Ela não precisava se preocupar, o amor só ficaria uns dias, uma semana, no
máximo, e a tranquilidade voltaria ao meu lar. Quando ela saiu, repensei minha
decisão por alguns segundos, até que o amor sedutoramente apareceu na minha
frente com o olhar fixo e a boca vermelha. Desmaiei.
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Camila Pina Brito é baiana, bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz, especialista em História, também pela Uesc, Mestra em Relações Étnicas e Contemporaneidade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, atua principalmente, em Direito Civil-Constitucional, Sociologia jurídica, Antropologia jurídica e História do Direito. Tem pós-graduação lato sensu, Curso de extensão do Curso em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça, pela Universidade Federal da Bahia, fez Curso de Educação Popular em Direitos Humanos na Uesb, é Professora universitária, dona de casa, companheira de Marcelo Sena e mãe de duas gatinhas, Zefa e Diana. Escreveu artigos, publicados em Revistas impressas, participou de várias mesas como palestrante, sobre questões de gênero e outras, escreveu dissertação para o trabalho de Mestrado, sobre mulheres trans e negras, a partir de entrevistas com três mulheres e milita em todas as áreas de combate ao machismo, racismo, homofobia e outros preconceitos.
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