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De volta a esse lugar
(por Cris Lira)
Daqui do outro lado deste sol, meu intervalo de tempo
entre o almoço e o encontro marcado faz-se quase da metade reduzido. Entre um
lá e um cá, ouço sobre drinques, máscaras, viagens, faces. Eu, estanque, corpo
mergulhado na banheira de água fria deste meu apartamento na vila universitária
de uma cidade que não habito, reduzo-me a uma observadora.
Na tela do computador, a coloração das folhas mudou de
lugar pelo menos duas vezes enquanto encaro os textos que me confrontam. O
tique-taque do aplicativo do celular me informa dos intervalos para viver entre
uma escrita e outra ao tecer o artigo de que nem gosto, mas é necessário para
que eu continue a ser a cidadã desenhada na canção de Raul Seixas, esperando,
com a boca cheia de dentes, a morte chegar.
Os arroubos de luzes invadindo o apartamento, neste
verão americano, interrompem meu ritmo de escrita. O olhar para a esquerda
observa um último sereno na criança que brinca tranquila na grama. Minha
espinha reclama, o aplicativo diz que ainda devo esperar cinco minutos para
viver outra vida que não seja aquela que construo a cada tecla experimentada.
O telefone toca e despenco murcha do transe da janela.
É um daqueles serviços que nunca se sabe. Desligo, decido agir rebelde, quebrar
o tempo. Das vantagens da jaula, o café que posso preparar para olhar de frente
a tarde negada na folha branca com meia dúzia de caracteres. Seguro firme a
xícara que, no entanto, me escapa. A pequena mancha no pijama me atravessa,
trazendo-me minha lua em virgem a plenos pulmões, “pare de fugir, há um prazo a
ser cumprido”. Sento-me novamente na cadeira rústica, leio um dos comentários
do revisor que me lembra da atmosfera de medo da campanha presidencial de 2002.
Já não era meu cubículo suburbano no oeste dos Estados
Unidos, mas a casa mínima de sala improvisada e a digníssima senhora televisão
no ponto mais alto dela. A gurizada sentada no chão batido meticulosamente
encerado de carmim. Todo mundo muito chateado com a interrupção da programação
para o horário eleitoral obrigatório. Na tela da velha sharp, aquela mulher
simpática nos olhava toda delicada e se abria em confidências, “eu tô com
medo”. Minha mãe, segurando o pano de prato roto, repetia que estava com medo
também. Vossa senhoria, pelado da cintura pra cima, limitava-se a concordar com
a cabeça.
Neste agora, procuro Regina. Por onde andará a
namoradinha do Brasil? O que foi feito do seu medo?
O sistema de alerta do aplicativo me lembra que tenho
uma hora até meu encontro com outros textos. Fecho a janela de Regina e quando
a tela preta desponta, noto o meu sorriso roto de lado.
Retorno ao artigo no qual costuro ansiedades de 2002
com 2017. Falo de entrevistas lidas, cito um certo sindicalista, emociono-me
com projetos de cabelo branco e bengala curta. Revejo a jovem que cresceu
querendo ser jornalista, mas teve o sonho negado na comparação de reais. Entre
os 250 da faculdade de letras e os 400 da de jornalismo, venceu a que o salário
mensal de 400 reais podia pagar. Se eu fosse apenas uns anos mais jovem...
O alarme me capta de novo. Há que se terminar a frase
antes de se voltar a viver. Não termino. Pinto o texto de azul para lembrar
onde parei. Antes de me levantar, vejo o livro ao lado do computador, Declutter
Your Mind. Agarro-o e enfio a ponta da lapiseira na capa, rasgando-a. Não
paro até que toda aquela garantia de soluções falsa desapareça.
Não imaginava que aquele ato de 2017 fosse um
simulacro ao pedido de leveza daquela que, então, eu não sabia por onde andava.
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Parte
do livro no prelo O mundo é esse lugar (2020) da Editora Venas Abiertas
Cris Lira escreve desde que se entende por gente. Em 2019,
publicou, pela Editora Venas Abiertas, o poemário Ponte para o poente e
o livro de contos No país da infância. Ambos são parte da Coleção I do
Mulherio das Letras. A autora também tem contos publicados nas seguintes
coletâneas: Mulherio das Letras (2017, 2018 e 2019) e Escrevendo com as
e-moções (Leonella Ateliê, 2018). Há poemas seus também em coletâneas do
Mulherio das Letras (2018 e 2019). Além de escritora, é doutora em Línguas
Românicas pela Universidade da Geórgia, onde pesquisou a representação de
personagens guerrilheiras em narrativas brasileiras e argentinas. Atualmente, é
diretora do programa de Língua Portuguesa da Universidade de Iowa, em Iowa
City, EUA, onde também ensina língua, literatura e cultura. Em 2019, tornou-se
uma das articuladoras do Mulherio - Estados Unidos, organizando, ao lado das
colegas Angela Mooney, Cecília Rodrigues, Lígia Bezerra e Luana Reis, o
primeiro evento do coletivo em Atlanta, Geórgia. Nesse encontro, apresentou o
seu projeto mais recente de pesquisa, sobre a produção textual organizada pelo
Mulherio das Letras. Encantada com as vozes de tantas mulheres, decidiu criar
um canal no YouTube, o “Vamos ouvir o Mulherio”, no qual lê textos publicados
pelas escritoras do coletivo. Essa iniciativa gerou um convite para ser
colaboradora da Revista Ser MulherArte,
na qual tem uma coluna chamada Ouvindo Mulheres. Seu novo livro, O mundo é
esse lugar, é parte
da Coleção II do Mulherio das Letras e tem lançamento previsto para dezembro de
2020.
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Muito obrigada pela oportunidade, Lia!
ResponderExcluirComo eu adoro ler tudo que vc escreve!
ExcluirAngela, muito obrigada por suas palavras tão carinhosas! <3
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