Um conto sensível e interessante de Giovana Proença

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                                                             Trapézios

por Giovana Proença


Desviou de um motorista desatento ao atravessar a rua. O coração mal palpitou a adrenalina do quase atropelamento, ocupado com a inquietação maior. Não havia espaços para o ‘quase’ quando saiu do encontro, o pacote na bolsa carregava o peso de todas as esperas. No anseio de prolongar a sua própria, vagou sem rumo pelas ruas da cidade. Levava o olhar baixo, registrando os padrões das calçadas. Poucos transeuntes tomavam as vias, se perguntou se todos levavam uma corrente tão pesada como a que estava prestes a se libertar.
Caminhou pela avenida larga, sentindo vez ou outra o fustigar de uma folha solta, que seca, desprende-se em derradeiro resvalo ao definhar, caída das árvores que ladeiam o pavimento. Sente-se atraída por um terreno baldio, marcado pela placa ‘Não jogue lixo’. Afaga o muro em tentativa de fundir-se ao concreto, registrando a textura áspera em suas digitais. Chega ao portão que revela o declive do lote, atingida pelo vislumbre da abstrata aquarela do crepúsculo. Imaginou como seu semblante ficava por trás das grades. Da elevação, a mistura de cores da tarde partida e o luar turvo pareciam aos seus pés.
Com os presságios da noite estendidos abaixo de si, continua os passos ritmados. Conta os carros amarelos que cruzam a visão. Nenhum aparece. Ajeita o cachecol em duas voltas no pescoço, em reação ao vento que bailava o percurso. Como consolo, um ipê amarelo a regala com uma só pétala.

Sentou na grama, o pacote na bolsa como amarra. Os fios intocáveis imobilizavam o corpo que deixava cair. Os sons do mundo se faziam ensurdecer enquanto a presença do circo se solidificava. Repousou a visão na lona, abrindo o olhar. O vazio indicava a falta de espetáculo, armando a arquitetura do abandono. Os vestígio eram as cinzas dos confetes, restos que permaneciam esparsos. Evoca a imagem dos equilibristas, eternos passageiros do ‘quase’ que paira suspenso, ela própria sentindo-se suspensa no ar. Os pássaros que rodopiam nas árvores eram seus trapezistas em giro. O castelo de cartas, damas e valetes, propensos a desmoronar com o sopro.

Lembrou quando ela própria pendia como trapezista mal equilibrada, dama de um castelo prestes a ser destruído. Seu valete entrava sem pedir licença, os cabelos desarrumados e as mangas da camisa dobradas na altura dos punhos. Abraçava-a até ela soltar o suspiro profundo ao inalar o leve aroma de tabaco. Colocava canções no disco e tirava-a para dançar com a mão estendida, toadas de MPB “Foi tudo tão de repente, eu não consigo esquecer, te confesso tive medo, quase disse não...”. Colocava o lábio de leve em sua orelha, e sussurrava com a voz de músico, um cantarolar mais íntimo que qualquer toque “Mas o seu jeito de me olhar, a fala mansa meio rouca”. As mãos dele começavam o trajeto por seu corpo com destino ao zíper do vestido. Terminavam no sofá mal acolchoado, no qual por horas confundiam-se em uma telepatia tátil.

Acabou como jogo de azar. A ânsia por implorar que fique-coloque-nossa-música-dance-comigo-por-horas-até-cairmos-no-tapete-suados-me-puxe-para-o-sofá-me-abrace-no-sono-beba-em-minhas-xícaras-lascadas-ouça-meus-discos-arranhados-faça-uma-última-jogada   morreu sufocada. Tudo volta para o telefonema não atendido, só restam as canções. Abre o pacote, depois a caixa, lembrando-se das bonecas russas de sua infância. Desenrola o comprimido, em contemplação, e hesita dois instantes. Primeiro lamenta a falta de água, ao pensar na pílula seca pela a garganta. Depois pensa no golpe das contrações, quantas-aguentaria-antes-de-cair-em-posição-fetal-quantos-golpes-a-ardência-em-brasa-o-suor-escorrendo-o-sangue-em-cascata-pelas-pernas-quanto-tempo-duraria.

Enrola o comprimido e guarda na bolsa, o fardo das correntes arrastáveis cada vez mais concretas. Lança um último olhar ao circo, como quem busca o espetáculo em seus vestígios. Caminha com o pesar da espera iminente, a pílula como grito surdo que carrega. Abaixa os olhos e segue o trajeto como fio de trapezista. Vai direto para o espelho no banheiro e encara a outra face dela própria. Fecha os olhos e pode quase ouvir os timbres da canção. No fim, sucumbe ao abismo da queda, seu espetáculo circense. Reconhece a derrota no jogo de equilibristas. 


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Giovana Proença é taubateana e estuda Letras na FFLCH-USP.   Atualmente é editora de literatura  do suplemento cultural Frentes Versos. Publica contos em revistas literárias e se arrisca na poesia. 




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