Uma colher de chá pra ele - Marcio Sales Saraiva
| uma colher de chá pra ele - 06 |
FACE TO FACE
por Marcio Sales
Ele era muito bonito, inteligente e romântico, mas com uma
dose certa de angústia e inquietação com a vida. A idade se adequava ao gosto dela, uns vinte e poucos. Suas fotos revelavam sorriso e personalidade
encantadores.
Já fazia dois meses que se conheciam pela Facebook. Ela
colocou-o como favorito e o acompanhava todos os dias. Em geral, era a primeira
a curtir e fazer algum comentário carinhoso e elogioso sobre aquilo que ele
postava: poemas de Hilda Hilst e Drummond, frases de Platão, Aristóteles, Kant,
Rousseau, Schopenhauer, Nietzsche, Hannah Arendt, Bauman. Pequenos vídeos de
Clóvis de Barros Filho, Mario Sergio Cortella e Leandro Karnal. Músicas de
Chico Science do YouTube. Alguns quadradinhos com frases emolduradas sobre
filosofia budista e taoísta. Além de matérias da mídia, sem comentários
pessoais, de sites conhecidos como progressistas.
Temos muitas
afinidades, suspirava Mirela diante do farto material que Marcelo
Carvalhosa derramava em sua rede social. Tomou coragem e enviou uma mensagem
por inbox, percebendo que ele estava online.
— Olá! Como você está?
— Oi, tudo bem?
— Então... Que tal tomarmos um café? Vi que você mora aqui
em Recife, eu também.
— Oxente! Que massa! Vamos sim. Eu trabalho na parte da
tarde. Pode ser pela manhã, ali no Café com Dengo?
— Massa! 9 horas lá. Bjs
— Bjs. — E enviou um emoji enorme com olhos esbugalhados de coração.
Mirela não gostou do emoji, exagerado, mas sentiu que aos
dezenove anos poderia ter aquela experiência maravilhosa — de acordo com as
comédias românticas e as histórias das amigas — com alguém que valeria a pena e
sua castidade.
Chegou na cafeteria quinze minutos antes, desassossegada. Como
será seu cheiro, sua pegada? Olhou todas as fotos que ele postara de si no
Facebook: um homem bonito, alto, moreno, de cabelos pretos cortados com esmero.
A pele era veludo, e já imaginava o resto.
Pediu um café pequeno, simples, apenas para passar o tempo e
esperá-lo. Puxou os “Contos de Amor Rasgados”, de Marina Colasanti. Não seria
bom que ele percebesse sua ansiedade. Queria demonstrar controle sobre a
situação, quase indiferença. Bebia lentamente o cafezinho, e com olhos deitados
nas palavras, ouviu aquela voz.
— Oi! Você é a Mirela?
Em câmera lenta, ela jogou os cabelos para trás e levantou
sua face, deixando o café na língua e a Colasanti na mesa. Mirou-o lentamente.
Não podia ser. Não era ele. O rosto era diferente, o corte de cabelo e o
tamanho. A roupa, esquisita, a pele cheia de acne, a bermuda deslocada. Os
chinelos mostravam pés feios e malcuidados que não se ajeitavam com os
cambitos. Não havia cheiro algum de perfume no ar.
— Oi! Você é o Marcelo Carvalhosa?
Queria que fosse engano. Não,
sou Carlos Augusto. Foi mal.
— Eu mesmo! Você é linda, sabia?
Ele logo puxou a cadeirinha e sentou-se de frente para ela,
que não sabia o que dizer.
— O importante é o que vai na alma — disse, buscando algum
sentido.
— Pois é. Tem uma frase assim que eu postei esses dias. Era
do Leandro Karnal. Minto, da monja Coen. Não. Pensando bem, era de um amigo
meu. Bem, vou pedir um café para nós dois.
Pelo amor de Jeová,
pensou ela, comendo brocha, mas respondeu:
— Eu já bebi um cafezinho, carece não. Fale-me de você.
Bastou cinco minutos para confirmar que Carvalhosa era o cão
chupando manga. Um sujeito arrogante e um tipo especial de imbecil, daqueles
que pensam que sabem alguma coisa porque leram frases soltas em sites de citação
ou viram trechos de três minutos de uma palestra TED qualquer. Em poucas
palavras, Marcelo era raso, como rasos de água ficaram os olhos de Mirela. Não
rolaria nenhum chamego. A questão não era seu porte físico, mas sua ausência de
alma.
Dos belos e reflexivos excertos que postava, ele nada
entendia, nem lia. Ela não o lia e, projetando seus desejos naquilo que seus
olhos soletravam, não compreendera que reproduziu um fake-homem. Com o gosto
amargo que invadia sua boca, percebera que tudo seria muito melhor se tivesse
ficado platonicamente restrito ao Facebook e não transbordasse para uma
frustrante situação face to face.
Precisava agora pensar numa estratégia para se livrar daquele cara machista,
babaca e empafiado. A desilusão é uma
revelação que nos amadurece, pensou consigo mesma enquanto Carvalhosa
falava, falava, falava.
***
Nascido em 1972, Marcio Sales Saraiva é carioca, suburbano,
vascaíno, geminiano, filho de Oxalá, cristão libertário, socialista e cientista
político. Gosta de escrevinhar coisas, de brincar com as palavras. É autor de
três livros publicados pela Metanoia Editora, sendo um deles o romance “O
pastor do diabo” (2017). Organizou a antologia “16 contos insólitos” (Mundo
Contemporâneo Edições, 2018) e reuniu diversos textos espalhados pelas redes
sociais ou escondidos no seu notebook para lançar o seu primeiro livro de
contos: “Engenho de Dentro e outros contos de aprendiz” (Mundo Contemporâneo,
2019).
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