Cinco poemas de Mariana Belize | "De dentro das revoltas submersas"

 

Fonte: pixabay.com


Cinco poemas de Mariana Belize

"De dentro das revoltas submersas"


billie

 

lavo os pratos do jantar

enquanto Adorno fala pausadamente

sobre a dialética, a indústria cultural

e reclama do jazz

 

que toca baixinho na sala de estar

 

somente Benjamin

sorrindo

relega a si mesmo a tarefa

tediosa

 

de secar os talheres

e me dizer entre sussurros

"pegue o bebê inseto e vá dormir...

Theodor não vai

parar

de

falar

de

si"



Janis

 

de gota em gota

o filtro enche a garrafa miúda

 

pacientemente aguardo

barriga na beira da pia

 

enxaguando um copo

 

entre sabão e sangue, deliro

tento sair desse

dia

 

que é apenas mais um


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Em junho

 

é a verdade que eu sonho:

ontem apontei pra igreja de são joão de meriti

e assumi a cidade inteira como estado de emergência

gritei que a baixada fluminense é uma coisa que vai invadindo a gente

aos poucos e nascer aqui não é estar aqui

a baixada fluminense é uma parada que vai rolando dentro da gente

aos poucos, rolar essa pedra, essas rochas

as pedras do meio do caminho entre Belford Roxo e Nova Iguaçu

uns que esta terra pariu estão longe

são doutores envergonhados

empurrando seu japeri, uma seropédica real

impossivelmente real,

com um rei na barriga

a baixada fluminense é meu coração em brasa

 

foi assim que larguei mão dele:

o meu desejo ridículo de ser leblonense

e copiar os cabelos das donzelas

dos mausoléus botafoguenses

larguei tudo na avenida nossa senhora de copacabana

e a urca brilhou nos olhos do meu desejo traído, enfim

diamantes de sangue, beijo de fel

 

o bom filho pródigo ao lar retorna

e renasce do ventre, de outras águas

a baixada fluminense é um espírito santo

que me toma por inteiro:

meu divino estado de emergência

meu tamanho estado de emergência

meu sinistro estado de emergência

a minha carapaça, minha terra

meu céu

Eu

olhei pra frente

encarando os vitrais flamejantes de são joão de miriti

os olhos de Gaia, a explosão áurea da tarde

esfacelando

 

grito

um raio que partiu brasília em duas

crateras

veio de múltiplos lamentos

 

as mulheres não só afundam navios, Ana Cristina

como derrubam déspotas

e salvam crianças.

 

Não há sequer um príncipe, um rei, um presidente

nesse mundo.


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Retrato

 

surda aos encantos europeus

impassíveis diante dos gritos

as estrelas apodrecidas e sem encanto

deste quatro de julho tão esquisito

dentro do golpe

cega aos palavrórios franceses

entristecidos nos livros abandonados

entre balzac a rimbaud, eu desabo.

 

impossíveis as desculpas dentro das revoluções

 

nós aguardamos ainda a greve geral

constrangidos

acompanhamos a marcha invencível.

 

não é francês o rapaz que me atende no metrô

da pavuna

nem é inglês o que o trem de japeri gritou

e solano traduziu.

 

em todo mundo, nossa herança

é alguma coisa entreouvida

 

de dentro das revoltas submersas

desse inverno em que me despeço

do cansaço de bibliotecas intraduzíveis

 

para este mal-estar tropical.



Figueira

 

trabalho ouvindo o cachorro ressonando

perto da porta, ele tão com os olhos de cão

agora fechadinhos, respira tão levemente

diferente de quando me morde e abana o rabo

uma alegria que só dele, às vezes, poucas vezes

me contamina e tira meu corpo de uma letargia

o cachorro nunca será meu

pois é do mundo, e o mundo

é todo dele

o que será que sonha o cachorro

com essa existência invejável

de tão plena?

eu sigo trabalhando e

na tentativa de ser mais cachorra,

junto minha respiração à dele

quem era eu tão plena na vida!

quem dera dormir sem sonhos

por não necessitar de fugas...

quem dera aninhar-se à porta

ressonando

e ser cachorra por todas as vidas.





Mariana Belize escreve no Projeto Literário Olho de Belize e é mestranda em Literatura Brasileira pelo Programa de Letras vernáculas da UFRJ. É poeta e seus textos estão no Palavra Belize, no wordpress.









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