Divina Leitura | A força vital da madeira: uma leitura de "Coração Madeira" de Marli Walker
Coluna 01 |
A força vital da madeira:
uma leitura de Coração Madeira de Marli Walker
- por Divanize Carbonieri
Coração Madeira (2020) de Marli Walker é a história de uma travessia. A protagonista, chamada de Filha do Meio e, posteriormente, de Coração Madeira, deixa o interior do Sul do país em direção ao sertão do Norte de Mato Grosso, num momento em que muito da mata nativa ainda existia, mas já estava em pleno processo de derrubada. É uma trajetória individual e, mais do que isso, de individuação, de uma mulher que se descobre senhora da própria vida em meio aos caminhos e descaminhos trilhados. Mas também é uma jornada que serve de paradigma para a de levas e levas de migrantes sulistas rumo à região Centro-Oeste.
Dessa
forma, o micro está contido no macro e vice-versa, numa interessante relação
entre a parte e o todo. Uma espécie de mecanismo de zoom aplica-se na
narrativa, permitindo que a leitora se aproxime e se afaste desse panorama
complexo. A principal particularidade parece ser o fato de a autora empregar a
perspectiva da mulher para narrar uma história que geralmente é contada pelo
ponto de vista dos homens, os desbravadores, colonos, madeireiros.
O
livro divide-se em três partes, embora os acontecimentos não se deem de forma
linear. É comum as idas e vindas, largadas e retomadas dos episódios. Na
verdade, a maioria dos capítulos intitula-se “Do episódio anterior”, sendo
seguido por um subtítulo diferente a cada vez. As exceções são o primeiro
segmento, chamado de “Grandes chuvas”, e o último, nomeado “De todos os
episódios anteriores”. Então, pode-se talvez afirmar que é desse núcleo inicial
que se engendram os posteriores, mas como a narração vai e volta, a impressão
que se tem é a de que o tempo narrativo se dá de forma espiralada.
Coração Madeira pode ser classificado como um coming-to-age novel ou romance de
formação porque o amadurecimento da personagem ao longo do tempo é o seu motivo
principal. A primeira parte, “Em nome do pai”, se concentra principalmente na
infância da protagonista, como é comum em obras desse gênero. Porém, o primeiro
capítulo traz um acontecimento já de sua vida adulta, na gleba em Mato Grosso,
e o vaivém entre esses tempos vai ser uma constante nessa parte. Ainda assim, a
preocupação maior nesse bloco parece ser a de retratar o seu início, sua relação
com os pais e irmãos, descendentes de alemães, numa cidade pequena, em Santa
Catarina.
A
infância passada num ambiente rural, numa família relativamente numerosa,
lembra a ambientação de Minha vida de
menina (1942) de Helena Morley, embora o período histórico seja
completamente diferente. Os diários de Morley cobrem um intervalo de tempo
entre 1893 e 1895, não muito distante, portanto, da abolição da escravatura e
da Proclamação da República no Brasil. O romance de Walker se passa entre os
anos 1960-70 e a atualidade, abrangendo uma vida de cinquenta e poucos anos. Porém,
como os cenários desse tipo eram (ou são) mais resistentes às mudanças da
modernidade, as experiências vividas em meio a uma vida mais tradicional,
familiar e próxima da natureza acabam sendo bastante semelhantes.
A casa paterna era de madeira,
grande, segura, amarela, constantemente amanhecendo como no poema de Adélia.
Havia uma mãe que cuidava, lidava, fazia cucas divinas, matava baratas pequenas
e um pai que lia, cantava modas de viola, tocava gaita de boca harmônica e
falava versos (WALKER, 2020, p. 21).
Era muito difícil, quase impossível,
conseguir tomar um banho de rio ou andar uma tarde à toa pelos bosques próximos
da vila para catar jabuticabas ou amoras sem que alguém visse e desse com a
língua nos dentes quando encontrasse os pais da filharada (WALKER, 2020, p.
23).
O
romance de Walker vem, portanto, somar ao conjunto de obras escritas por
mulheres que focam no desenvolvimento de meninas na literatura brasileira.
Apesar de existirem outros exemplos, como Anarquistas,
graças a Deus de Zélia Gattai (1979) e Diário
de Bitita (1982) de Carolina Maria de Jesus, não parece ser um grupo tão
numeroso, principalmente no que se refere à narrativa autobiográfica. Ainda que
Coração Madeira não seja
explicitamente uma autobiografia, muito da trajetória da Filha do Meio coincide
com a de sua autora, podendo provavelmente ser entendido como uma experiência
de autoficção ou autobiografia ficcionalizada. A diferença com as obras
anteriores talvez seja o tom feminista, uma vez que a individuação alcançada
pela personagem refere-se à sua libertação gradual das amarras do patriarcado.
Mas em
toda a primeira parte, a protagonista é apenas a Filha do Meio, porque ainda
não se individuou para ser Coração Madeira. De um patriarcado dominado pelo
pai, pela autoridade do masculino, ela passa para o patriarcado do marido,
chamado muitas vezes na narrativa de “dono do patriarcado”, com quem se casa
aos dezoito anos, justamente porque parecia não haver outras perspectivas no
contexto paterno.
Foi naquele período que surgiu um
moço diferente, especial, lindo aos olhos e ao coração da menina-moça que era
então normalista do último ano – o que encerrava sua carreira estudantil,
porque filhas mulheres cursavam o segundo grau e casavam. A elas não era
permitido cursar faculdade por força de lei, ordem, tradição instituídas muito
antes que a Filha do Meio pudesse supor, imaginar, questionar, contestar.
Gostava de ler, escrever, estudar, falar versos, mas essa opção não era dela,
então tratou de casar com o tal moço bonito [...] (WALKER, 2020, p. 39).
É com
esse marido que ela realiza a travessia para o Centro-Oeste. Além do calor que
faz as roupas colarem no corpo, a Filha do Meio se surpreende com o tamanho das
baratas encontradas, o que, de certa forma, se relaciona com a divisão do
território: “(Essa linha imaginária [o Paralelo 13]), pensava, (devia cortar,
separar o mapa do país em duas partes e devia separar também as baratas por
tamanhos). Concluiu que as pequenas ficavam abaixo e as grandes acima da tal
linha divisória” (WALKER, 2020, p. 19). Ainda que os tamanhos difiram, a
onipresença das baratas por todo o país é o fator relevante, o que acaba
revelando uma noção criticamente irônica da identidade nacional.
Enquanto
os homens estão envolvidos na extração da madeira, as mulheres, ou seja, as
esposas dos madeireiros e peões, desempenham um papel secundário nessa
atividade econômica, mas ainda assim imprescindível, garantindo a subsistência
de todos. A Filha do Meio logo se torna professora das crianças da colônia e
também uma espécie de enfermeira. As outras mulheres só são mencionadas duas
vezes, como a moça que está prestes a dar à luz durante as chuvas torrenciais
no primeiro capítulo (chamada sempre de “menina”) e como a esposa de um dos
muitos Zés ou trabalhadores locais, ameaçada com uma espingarda pelo marido num
dia de Natal. As mulheres não participam da derrubada das árvores, mas, assim
como elas, suas vidas estão à mercê dos homens.
Na
segunda parte, “Em nome da mãe”, a protagonista finalmente se torna Coração
Madeira. O que a leva a isso é principalmente ouvir a voz do próprio coração e
se reconciliar com a menina que um dia foi e que gostava de escrever seus
versos e ideias em cadernos bem encapados. Enumerar os eventos que conduziram à
sua individuação seria tirar da leitora a surpresa e o prazer de descobri-los
durante a leitura. Talvez só seja producente aqui mostrar um trecho que
explicita por que tal parte é nomeada pela figura materna:
O envelope continha o valor exato da
taxa de inscrição para o vestibular. Foi a forma que a mãe encontrou para dizer
que a filha estava autorizada a romper um preceito antigo e sem sentido.
Vá filha.
Você pode.
[...] Aquela mulher passava a ser a
primeira na fila das grandes mulheres que admirava porque viveu imersa em leis,
ordens e tradições e conhecia os limites impostos à sua voz, mas soube, como
ninguém, alterar o tom e a ordem das coisas no decorrer da vida da filha
(WALKER, 2020, p. 83-84).
Assim,
partindo da valorização pela matriarca, a própria Coração Madeira “rompe com o
seu patriarcado para descobrir uma matriarca dentro de si” (WALKER, 2020, p.
104). E o elemento madeira a revela irmanada mais uma vez às grandes árvores ameaçadas
pela ganância masculina. Assim como se espera que essas árvores resistam (que
faremos se todas desaparecerem?), a mulher também deve resistir às tentativas
de podamento e se fortalecer. Para as mulheres contemporâneas, libertar-se do
patriarcado significa instituir um novo matriarcado, mesmo que seja um que se
refira apenas à própria interioridade. Mas é a partir da força interna das
mulheres, a fonte de toda criação e criatividade, que surge a energia para “dar
conta” dos desafios que se apresentam, como bem faz Coração Madeira.
O
livro tem ainda uma terceira parte, “Em nome da Filha do Meio”, que é uma
espécie de apoteose ou celebração, um prêmio concedido por Coração Madeira à
menina e jovem que foi, atando as pontas de sua vida de maneira positiva e
entusiástica. Tanto é assim que podemos dizer, sem medo de errar, que Coração Madeira é um chamado para que
todas as mulheres possam se inspirar nessa história e buscar dentro delas
mesmas a propulsão para alterar os próprios destinos. O romance escrito por
mulheres em Mato Grosso lança uma nova e poderosa raiz. Que cresça e
frutifique!
Referências
GATTAI,
Zélia. Anarquistas, graças a Deus. São
Paulo: Cia das Letras, (1979) 2009.
JESUS,
Carolina Maria de. Diário de Bitita.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1982) 1986.
MORLEY,
Helena. Minha vida de menina. São
Paulo: Companhia das Letras, (1942) 1998.
WALKER, Marli. Coração Madeira. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2020.
(https://loja.tantatinta.com.br/produto/coracao-madeira/).
Estreia linda da sua coluna, Divanize, e belíssima resenha do livro. Parabéns a você e à escritora Marli Walker.
ResponderExcluirDivanize, meus desejos de sucesso em mais este caminho que você abre. Seus textos, e agora sua coluna, sempre densos, sinceros, fazem-nos viajar e querer ler, ler, ler! Um grande e saudoso abraço.
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