Divina Leitura | Vitória por nocaute em "Não presta pra nada" de Marta Cocco
Coluna 04 |
Vitória por nocaute em Não presta pra nada de Marta Cocco
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por Divanize Carbonieri
Não
presta pra nada (2016) de Marta Helena Cocco é um livro
delicioso. Em tramas bem elaboradas com os fios de diferentes falares, a autora
criou tipos humanos peculiares, pessoas muito parecidas com aquelas que
conhecemos na realidade. São treze contos, todos com protagonistas mulheres (a
exceção é “O regresso”, em que o marido parece ter tanta relevância para o
enredo quanto a mulher, talvez até um pouco mais).
Ainda que as histórias se
refiram, em sua maioria, a situações tristes ou melancólicas, muitas delas são
permeadas de humor. Trata-se de um humor reflexivo e dolorido, uma
conscientização irônica das dores do mundo. Em relação à temática, é possível
perceber três eixos principais: as relações familiares, a assimetria no
relacionamento entre homens e mulheres (resultando muitas vezes em violência) e
a destituição social.
As relações familiares retratadas
são norteadas por um certo desajuste das personagens, de algumas delas pelo
menos, que parecem não se encaixar no que é esperado delas ou que são
diferentes por alguma razão. Um exemplo é a narradora de “Cinco Marias”, o
conto inicial, que conta histórias sobre suas irmãs mais velhas. Sendo a
caçula, mantém comportamentos que a distinguem das outras:
Eu sou a mais nova. Cresci ouvindo dizer: essa daí não
presta pra nada, só pra estudar. Agora que tenho filho, trabalho na
universidade e dou conta de cuidar de uma casa, já não dizem. Quando sobra
tempo ou quando perco o sono, escrevo um pouco. Hoje rendeu. Falei das cinco
(COCCO, 2016, p. 16).
É desse trecho que vem o
título do livro. A personagem é considerada pelas irmãs como alguém que “não
presta pra nada”. Mas há aí um paradoxo. Ela não presta para nada, a não ser
estudar. E isso não seria o mais importante para uma jovem? Quem estuda
aparentemente não faz nada de produtivo no sentido imediatista, mas é assim que
se pode construir um futuro melhor.
Estudando, a narradora
conseguiu progredir: “trabalho na universidade”, “escrevo um pouco”. Com o
tempo, ela demonstrou que podia realizar muito, principalmente coisas que as
irmãs não puderam fazer. Elas próprias parecem ter reconhecido isso porque
pararam de se referir a ela daquela maneira. Assim como a narradora subverte o
que foi dito sobre ela, o próprio livro contraria o sentido de seu título,
constituindo-se, na verdade, de narrativas valiosas, que “servem” para iluminar
diversos aspectos da vida de mulheres comuns.
A biografia da narradora-protagonista
de “Cinco Marias” coincide com a trajetória da autora, que é professora
universitária e, obviamente, escritora. Isso nos leva a pensar que a história
pode ser autobiográfica ou autoficcional. Coincidentemente ou não, o último
conto da coletânea também permite essa leitura:
Leia mãe. Aí não tem palavra difícil, eu garanto.
Mas ela tinha que pôr um defeito. Marta, você só sabe
escrever assim? Não é capaz de contar alguma coisa diferente, uma coisa alegre,
uma coisa que termine bem?
Respondi que não, que a mim coube a pior parte. Está no
evangelho (COCCO, 2016, p. 63).
A referência, nesse trecho,
é ao Evangelho de Lucas, em que se narra um episódio de Jesus em Betânia, na
casa de Lázaro e suas irmãs, Maria e Marta. Enquanto Maria fica com a “boa
parte”, que é prestar atenção à preleção de Jesus, Marta tem que tomar conta
dos afazeres domésticos, sem os quais o bem-estar do hóspede ficaria ameaçado.
Assim como sua xará do
Evangelho, a Marta do conto tem uma irmã chamada Maria, que não quis acompanhar
a mãe na visita a uma amiga no asilo, preferindo ficar “de papo com um desses
inumeráveis amigos pseudo intelectuais que ela tem, bons de discurso, ruins de
serviço. Como ela” (COCCO, 2016, p. 59). O paralelo com as irmãs bíblicas é
evidente.
O que talvez não seja tão
evidente é que, nessa última narrativa, o papel de desajuste é compartilhado
pelas duas irmãs. Maria é vista como alguém indolente, da mesma forma que a
narradora de “Cinco Marias”. Porém, a irmã boa de serviço, Marta, também se
sente diferente, a ela cabe auxiliar a mãe e ainda escrever, principalmente
histórias difíceis, sem final feliz. Dessa forma, além de ter o mesmo nome da
autora, a personagem compartilha da “sina” de tecer narrativas tristes, como as
que estão contidas no livro.
Em outras situações, o
desajuste funciona como uma espécie de legado passado de uma geração para a
outra. Em “Motivo”, a mãe tenta aconselhar o filho que sofre bullying na escola:
Conto que minha mãe, no meu tempo, nem me escutava. Eu
tentava dizer alguma coisa e ela: não me venha com queixa. Não repito o
procedimento. Acredito que muita coisa pode melhorar com a força de uma boa
palavra (COCCO, 2016, p. 36).
Existe a sugestão de que a
mãe também teve problemas na infância, talvez no relacionamento com colegas,
assim como o filho. A diferença é que ela está disposta a ouvi-lo enquanto não
teve a mesma oportunidade em casa. A palavra volta a ter importância, ainda que
não seja a escrita como nos contos mencionados anteriormente, mas a oral,
fundamental em conversas que realmente podem mudar o modo de uma pessoa encarar
os problemas. O amor pela palavra parece ser mais uma convergência
autobiográfica.
O conto “Chuva benta” talvez
seja o mais contundente no que se refere à violência que muitas vezes permeia o
relacionamento entre homens e mulheres. A protagonista procura o padre para
contar sobre os abusos que sofre do marido. O sacerdote apenas a aconselha a se
conformar com a situação. Ela, então, procura outra mulher, mais poderosa do
que o padre: “Virgem, se você nunca precisou abrir as pernas para homem nojento
nenhum, se nunca teve de sufocar gritos de dor para não despertar os filhos,
afasta de mim esse calvário” (COCCO, 2016, p. 39).
O desfecho, corriqueiro como
uma nota no noticiário policial de qualquer grande cidade atual, não deixa de se
apresentar milagroso, não só para a personagem, mas também para a leitora. Um deus ex-machina (na verdade, uma deusa) proporciona
a solução para o conflito da protagonista.
No que se refere à temática
da destituição social, a narrativa em que ela parece ser mais visível é “Ensaio
sobre o tirar e o poder”. Trata-se de uma história contada a partir da
perspectiva de uma mulher sem muita instrução formal, que, mesmo numa situação
que exigiria mais formalidade, como o depoimento na polícia, vale-se da
variedade do português popular, provavelmente a única que conhece:
A gente tava indo pra Tangará da Serra. No que passamo o
Bugres, os cara viero de lá de trás. Quantos era? Era em três. Vestido como?
Ah, sei lá, tavo de roupa normal ué, calça e camisa, camiseta e eu havia de
repará nesse tipo de coisa? Ah, um tava com a camiseta escrito nike bem grande,
esse eu me lembro. Dois tava armado o outro não. Gritavo feito besta (COCCO,
2016, p. 41).
Em sua inocência-esperteza,
a narradora desse conto lembra as personagens engraçadas das tragédias de
Shakespeare, como a ama em Romeu e
Julieta. Mesmo numa situação trágica, tais figuras proporcionam momentos de
humor, como este: “Era um tira isso, tira aquilo. Só faltava pedi pra tirá as
calça. Aí também era muito atrevimento, né?” (COCCO, 2016, p. 42).
Assim como Shakespeare
emprega essas personagens para retratar tipos populares, uma vez que seus
protagonistas são geralmente nobres, Cocco aproveita a narrativa da mulher para
criar um panorama rápido da precariedade que envolve os mais pobres no país.
Uma das passageiras assaltadas no ônibus, por exemplo, estava a caminho do
enterro de um sobrinho, morto por falta de vaga no SUS. Os ladrões levaram todo
o seu dinheiro de aposentada, mas, para ela, o pior foi a perda da carta filha,
sem dar notícias no exterior, para onde foi com a promessa de emprego, que acabou
se revelando um engodo.
Por fim, é preciso dizer que
Cocco tem o domínio preciso da concisão. Seus contos exemplificam bem a máxima
de Julio Cortázar, que compara os gêneros narrativos ao boxe: enquanto no
romance se vence por pontos, no conto, a vitória deve ser por nocaute. Todos os
contos de Não presta pra nada têm
essa qualidade, neles, a autora vence a expectativa da leitora de forma breve e
certeira.
Isso significa que são não
apenas concisos, mas também surpreendentes. Apresentam, em alguma parte,
frequentemente já mais perto da conclusão, uma espécie de turning point, em que há uma mudança de rumo que contraria de
alguma forma aquilo a que a narrativa parecia conduzir. Também é possível
reconhecer, nesses instantes, um momento de iluminação para a personagem ou
para a leitora sobre ela. Sendo assim, são contos de estrutura perfeita e
temática relevante, tornando-se uma leitura atraente tanto para leitoras em
formação quanto para as mais experientes.
Referência
COCCO, Marta Helena. Não presta pra nada. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2016.
(https://loja.tantatinta.com.br/produto/nao-presta-para-nada/) |
excelente leitura da Divanize, já disse a ela, hoje li de novo e resolvi registrar aqui.
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