Maria - um conto de Helena Arruda
Maria
[por Helena Arruda]
As maritacas cantam nas mangueiras da
janela. O som estridente vem carregado de cheiros de uma infância feliz. Pouco
me recordo da minha infância. Mas me lembro do velho abacateiro nos fundos da
casa da memória. Reminders, diria certo filósofo francês. A memória é
casa habitada. Ouço o som das folhas da mangueira. Essa é a infância do meu
filho. Sinto o cheiro da infância dele se reescrevendo sobre a minha, como num
palimpsesto. Leio Elvira Vigna, uma mulher que soube assumir suas dores na
solidão da escrita. Tenho medo de não poder escrever meus tantos livros que
moram em mim. Paro. O vento e as sombras entram pela minha janela. Meus
pés e pernas florescem rendados pelas folhas e galhos das mangueiras que
balançam ao sol da tarde através da cortina. O sol invade meus pensamentos e me
aquece. Tenho medo de não poder sentir mais essa sensação. Penso que a sinto
agora. Estou no tempo presente. Mas habito outros tempos e outros lugares
quando olho para dentro de mim e para fora da janela. Meu nome é Maria. Só
Maria, como tantas mulheres sem cara. Remendo uma colcha de retalhos para
esquecer minha dor. Não esqueço.
Narro,
afinal sou protagonista. Onde saía leite quente para amamentar dois filhos: o
meu e o da outra, que não podia, hoje há dois furos, dois cortes precisos
feitos por duas artistas da medicina. Me entristeço. Não sei no que vão dar essas
memórias. Escrevo. Remendo minha colcha. Tubos, anestesias, dor, biópsias,
exames, mais biópsias, medo, mais medo. Sofrimento. Aguento firme a vida com
suas pequenas demonstrações de crueldade. Outro retalho, mais medo, mais
fragilidades. Elvira está por aí por perto. Mas sendo ela ateia, não deve
querer estar. Eu é que queria que ela estivesse. Ficcionalizo. Queria também
meu pai com aquele sorriso orgulhoso e feliz por minhas pequenas vitórias. Ele
deve saber que ando escrevendo umas coisas por aí, remendando a colcha da minha
infância. Livros. Será que ele sabe que lancei outros livros depois que ele...?
Um livro escrevi daquela vez que fiquei muda quando fui atravessada por outra
dor aguda. Reagi. Superei. Floresci. Já superei outras violências. Simbólicas.
Não-simbólicas. Conversei muito a respeito, com Foucault, Beauvoir, Bourdieu,
Butler, Bachelard, Todorov, Baudelaire, Machado, Galeano, Benedetti,
Graciliano, Guimarães, Dourado, Clarice, Cecília, Pessoa, Drummond, e tanta
gente morta. Se vivas, nem sabem que eu existo, então me digo. Importa que eu
sei quem são. Tenho resistido às maiores violações: reacionarismos, fascismos,
machismos travestidos de mil faces. Incontáveis guerras. Confesso estar
cansadíssima. De tantas vezes ter sido não-pessoa decidi virar pessoa na
agoridade do tempo, porque sonhar rente ao presente é o que vale para ter paz.
Escrevo, então, leitor, para que saiba que permaneço acreditando na humanidade.
(Conto publicado na
antologia Mulherio pela Paz, 2018, intitulado de Retalhos de Maria, e
adaptado para publicação no livro de contos Mulheres de A à Z, sob o
título de Maria, a ser lançado em 2021)
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Helena Arruda nasceu em Petrópolis, RJ. É mestra e doutora em Literatura Brasileira (UFRJ). Poeta, contista, ensaísta, é autora dos livros Interditos – poemas (2014); Mulheres na ficção brasileira – ensaios (2016), ambos pela Editora Batel; Corpos-sentidos (2020), Editora Patuá; A mulher habitada (poemas) e Mulheres de A à Z (contos), com lançamentos previstos para 2021. Helena tem trabalhos publicados em diversas antologias. Suas publicações mais recentes constam do livro de ensaios, Ficção e travessias: uma coletânea sobre a obra de Godofredo de Oliveira Neto (7Letras, 2019), do livro de poemas antifascistas, Ato Poético (Oficina Raquel, 2020) e da antologia Ruínas (Patuá, 2020). A autora também escreve para coluna Flauta Vertebrada, do jornal eletrônico O Partisano e faz parte do Coletivo Mulherio das Letras, desde a sua inauguração, em João Pessoa (2017); também é membro do corpo editorial da Revista Topus – espaço, literatura e outras artes, da UFTM. Suas pesquisas acadêmicas estão relacionadas a temas como descolamentos territoriais (deambulações, migrações), personagens femininas, autoria feminina e questões de autorreflexividade.
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