Pôr do Sol | um conto de Vera Ione Molina
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Pôr do sol
[por Vera Ione Molina]
Na noite anterior fomos a uma festa. Bebi muito
e, como sempre, tivemos de voltar para casa antes dos amigos. Vicente me
dissera muitas vezes que não suportava mais minhas bebedeiras. Eu prometia que
não beberia mais, mas odiava o jeito que aquelas alunas do meu marido o tratavam.
Discutimos muito, tenho a impressão que horas a
fio, mas não lembro de quase nada do que eu disse. Ele devia ter me dito algo terrível porque eu joguei na cara
dele que ele era o homem mais feio que tinha passado pela minha cama. E, como
bêbado não mede as consequências, dormi.
Acordei cedo, tinha de entregar um bolo decorado
para um aniversário de uma menina criada pela avó que pediu uma cobertura de
chocolate e, no alto, o príncipe calçando um sapatinho na Cinderela.
Vicente tinha acordado e me chamou para tomar café
com ele. Falou do enorme ninho de caturritas no pátio que parecia dar movimento
à casa, como se estivéssemos no campo. Fiquei aliviada porque tudo estava
normal e fui para a cozinha cuidar do meu trabalho, tinha de ser uma obra de
arte. Nunca mais beberia. Queria continuar feliz com o som das aves, as festas
dos cachorros e com Vicente lendo e produzindo textos para as aulas de
Filosofia.
Bati quatro claras em neve. Nós dois em Bariloche,
subindo o Cerro Catedral. Fui acrescentando as gemas. Procurei a lata de
açúcar, a xícara, depois acrescentei o leite, a margarina, a farinha de trigo e
o fermento. Vicente passou por mim com um saco plástico cheio de papéis, estava
fazendo uma limpeza, e me deu um longo beijo. Dividi a massa em duas partes,
numa delas misturei o chocolate em pó. A menina queria chocolate e amendoim,
comentei com Vicente quando ele passou com uns livros. Ele sorriu e disse que a
menina tinha bom gosto. Coloquei as massas em formas separadas, untadas com
margarina e enfarinhadas. Brinquei com as mãos naquele pó tão branco e macio.
Fechei os olhos e fiquei ouvindo os sons dos diferentes pássaros, o latido dos
cachorros para uma carroça que passava na rua. Corri quando lembrei que tinha
de aquecer o forno antes de colocar as massas para assar.
Ouvi uma conversa estranha de meu marido com dois
homens que carregavam sacolas. Tinham passado vinte e cinco minutos e fui
retirar as formas do forno. Ainda faltava preparar o creme, a decoração. E eu
comecei a sentir a tarde tornando-se rosada mais cedo que de costume. Dos cães
eu só ouvia os barulhos das patas, como se saltassem para brincar com alguém da
casa.
Aquele movimento de Vicente provocava uma angústia
que tive de acender as luzes para procurar uma panela. Queria terminar minha
tarefa, parecia o bolo mais demorado que eu tinha preparado e eu era acostumada
com o trabalho que realizava fazia tanto tempo. Derrubei a panela, juntei-a com
uma enorme irritação e receio pelo entardecer prematuro. Misturei o leite, as
gemas passadas na peneira (tarefa que me pareceu insuportável e desnecessária),
o açúcar e o amido de milho. Levei ao fogo, sentindo um calor que transfigurava
minha visão do relógio de parede, dos ingredientes sobre a mesa, dos sacos com
papeis.
Os bolos esfriavam, fui até o gabinete. Só restavam
duas cadeiras que tinham pertencido a minha avó. Eu nunca deixei de entregar
meus trabalhos e sempre foram considerados obras de arte. Respirei fundo,
voltei para a cozinha, tomei um copo d’água e me concentrei na preparação da calda
que tinha de ser em ponto de fio. Não podia errar, também não podia deixar tudo
agora nem por minutos, eu dependia de tempo. Misturei o amendoim que Vicente
tanto gostava. Espalhei a calda sobre uma superfície lisa e untada com
manteiga. Ouvi novamente vozes de homens estranhos.
Enquanto esfriava a raspa, fui até a sala e junto
às paredes estavam todos os livros de Vicente. Gritei que ele não fosse embora
e ele disse que já tínhamos nos dito tudo o que era necessário.
Cortei os bolos ao meio e umedeci com a calda.
Levei à geladeira para firmar.
Juntei a Cinderela ao príncipe e reuni os confeitos
para dar o acabamento.
A porta da rua bateu e pela janela não enxerguei
nada além de um céu vermelho-sangue.
***
VERA IONE MOLINA é graduada em Letras e pós-graduada em Teoria da
Literatura (ambos na PUC-RS). Nos anos 90, ministrou oficinas literárias na
Casa de Cultura Mário Quintana e no Centro Municipal de Cultura em Porto
Alegre. Foi jurada do Prêmio Açorianos de Literatura, do Prêmio Histórias do Trabalho
e integrou a Academia do Prêmio Fato Literário, promovida pela RBS.
Publicou ensaios e artigos em diversos jornais e
revistas do estado, com ênfase para Uruguaiana, sua terra natal.
Além de fazer parte de inúmeras antologias,
entre elas “O Livro das Mulheres, org. Charles Kiefer, Mercado Aberto, 1997),
Concurso Binacional Moviarte 90 (Biblioteca Pública de Pelotas e Grupo Eslobon
Cantando La Paz, Canelones, Uruguai), organizou várias coletâneas de prosa e
poesia. Vera Ione Molina publicou, entre outros gêneros , os romances
"Quarentena"(IEL/Alves Editora, 1994 e PROA , 2011. Em 2017, a novela
Quarentena ganhou terceira edição e novo título: "Notícias da guerra e o
destino de Laura", pela Editora Bestiário, "O Outro Lado da
Ponte", (Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1997) e “Gemido da Morte
sob a Sola dos Sapatos" (Editora Bestiário, 2016). E também os livros de
contos “Outros Caminhos” (Mercado Aberto, 1996) e "O quarto amarelo"
(Editora Bestiário, 2015) "Outra e Mais Outra e Mais Outras Vezes", contos
eróticos ilustrados por Roberto Schmitt-Prym (Editora Bestiário, 2016) e
"Quanto Soam as Horas", Contos Fantásticos (Editora Bestiário, 2016).
Ainda teve o livro infantojuvenil “Eram duas
vezes – Histórias da vovó”, ilustração Yuji Schmidt e "Catarina abre um
caminho de magia - Histórias da Vovó", ilustração Francisco Juska Filho,
ambos pela Editora Bestiário, 2016 e, 2017.respectivamente.
Que conto interessante! Gostei muito.
ResponderExcluirLindo conto e sensível
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