Um conto de Érika Gentile | "Dor"

 

Fonte: pixabay.com


Um conto de Érika Gentile

Dor

 

Eram pretas as saias que varriam o chão, como asas de urubus. O homem vociferava pelos corredores com um  livro nas mãos. Ela estava distraída. Ele bradava contra os pecados, a voz era muito forte, os braços gesticulavam enquanto andava entre as fileiras de mulheres ajoelhadas, cabisbaixas, retendo suspiros ...” Porque fizeste isso, serás maldita “....  Ela pensou no João, atrás do paiol, nos corpos deles se esfregando no muro, mas não se mexeu. A veste soturna rodopiava vigorosa e o padre inquiria com olhos agudos.

Agora já não estava de joelhos, mas de quatro, no piso, um corredor imenso, vermelho, irregular. Encerava ladrilho por ladrilho. Outra saia veio até ela. Olhou sua barriga avantajada. A saia era branca. Já está quase no fim. Não soube se falava da barriga ou do corredor.

Não tem mais saias, apenas a sua mãe mexendo o doce de goiaba na panela. O doce é vermelho, mas as toalhinhas continuam brancas.

Procurou dona Cidinha Toco de Açougue. Moça direita não fala com ela, moça direita não sabe o seu nome. Dona Cidinha não pode ajudar. Deixou passar três regras. Se tem perigo para você, tem perigo para mim.

Cinco amigos do João vão dizer que estiveram com ela no paiol. João tomou o trem. João foi  para a Capital. João é muito jovem. João tem planos. João vai ser doutor.

No escuro, lampejam os olhos furiosos do seu pai, cintilam as lágrimas silenciosas de sua mãe. Rins quentes, eu avisei que ela tinha rins quentes. A boca sangrando de sua mãe. Ela não. As toalhinhas estavam brancas.

A estrada era comprida e esburacada, a mãe foi ficando pequena na porteira, só o fio de sangue lhe escorrendo pela boca, o carro sacolejava pelos buracos, a poeira vermelha fechava o horizonte, o corpo tremia todo e as toalhinhas permaneciam brancas.

Porque já não havia regras foi se acostumando com o movimento involuntário do seu ventre. Ousou um nome. Atreveu-se a ansiar. De lã furtada fez casaquinhos. Súbito, vinha aquela tristeza de séculos ressuscitar a lembrança de sua mãe esmaecendo na paisagem, os olhos de repulsa do seu pai, o desencargo de João. O tormento de pensar era tão grande, que ela se concentrava nos ladrilhos vermelhos do imenso passadiço.

Sentiu o espasmo saindo lá do meio das costas, pequeno e depois intenso, “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto: darás à luz com dor teus filhos”, a ira do clérigo ressurgindo de outras vidas. Tudo estava rebentando, um rio saindo pelas suas pernas abertas, a luz branca no teto e o grito para fazer força.

 Uma menina escarlate surgiu no alto, tinha a cara amassada e os cabelos revoltos e lambuzados. Gritava com a força e a raiva de todas as mulheres do mundo. Um homem a segurava pelos pés. 

Ela estendeu os braços, queria alcançar a menina que pairava no ar.

Vestida com um véu branco, apareceu outra mulher. Não era a Virgem Maria, mas, com a pujança de legítima autoridade, recitou a sua infinita danação.

- Não é sua. Não vai ficar com ela, Domitila.

E o mundo, desalinhado, inundou de vermelho as imaculadas toalhinhas.



Fonte: pixabay.com




Érika Gentile é natural do interior de São Paulo, há muito tempo em Cuiabá. Advogada por formação, escritora por desejo. Participou das antologias Contos de Som e Silêncio e Mini Contos Coloridos, organizadas por Marcelo Spalding e da Antologia Sós, organizada por Tiago Novaes. Atualmente em processo de revisão do seu primeiro romance. O conto "Dor" faz parte da Antologia Sós.





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