Divina Leitura | O Afrofuturismo em "Sankofia" de Lu Ain-Zaila
Coluna 07 |
O Afrofuturismo em Sankofia de Lu Ain-Zaila
Sankofia (2018)
de Lu Ain-Zaila é um livro afrofuturista. Em vários momentos, sua autora
trabalha na intersecção entre ensaio e ficção. O próprio subtítulo não deixa
dúvidas quanto a isso: Breves histórias
sobre afrofuturismo. Logo no início, no local em que normalmente se
encontram os prefácios, Ain-Zaila apresenta uma certa genealogia do termo,
provavelmente desejosa de que suas leitoras não percam de vista o aspecto
político da obra, mesmo que as ficções ali sejam altamente envolventes.
Segundo ela, o afrofuturismo relaciona-se com a
prontidão dos povos negros de se “imaginar e viver futuros onde suas pátrias,
descendências, culturas e vidas seriam livres de qualquer tipo de opressão”
(AIN-ZAILA, 2018, p. 5). Na literatura e nas artes, isso implica um afastamento
da representação das pessoas negras em posições de subalternidade e um modo de
retratá-las como agentes plenos de suas vidas, sendo capazes de intervir
positivamente no presente e futuro de suas coletividades.
Desta
forma, podemos concluir que o Afrofuturismo é uma metáfora afrocentrada
realista sobre o verdadeiro reflexo de uma pessoa negra, que precisa
experimentar o seu eu enegrecido em essência, seja como escritor ou escritora,
leitor ou leitora, compreendendo que é possível e mais do que justo, que
protagonize o seu destino ou que crie mundos onde heróis e heroínas de face negra
sejam sujeitos da narrativa (AIN-ZAILA, 2018, p. 8).
Para forjar esse futuro de promissoras perspectivas,
o passado precisa ser reconstruído de uma forma em que valores ancestrais
readquiram expressão e significado. Então, não é incomum, nas obras
afrofuturistas, muitas referências aos legados culturais das diversas
populações negras, numa tentativa de render tributo ao que muitas vezes foi
obliterado pela escravização, colonialismo e discursos de inferiorização.
Ain-Zaila parece ter isso constantemente em mente porque não deixa dúvidas a
respeito da extensa pesquisa que realizou para a criação de suas histórias,
sendo que algumas trazem inclusive as referências bibliográficas em que se
baseiam ao final.
O conto que abre a coletânea, intitulado “Era
afrofuturista”, tem como protagonista uma criança negra que vai com o pai, num
século futuro, visitar o Centro Cultural do Afrofuturismo, uma espécie de museu
com vários andares com toda a contribuição cultural, científica e literária dos
povos negros na história. É uma instrução para o menino a respeito das questões
afrofuturistas e também para nós, leitoras. Faz parte desse conto uma definição
ainda mais precisa do que a que aparecia na introdução teórica:
Afrofuturismo,
a ideia de um modo geral tem a ver com a projeção de pessoas negras no futuro:
protagonistas de seus destinos, se vendo capazes de salvar e mudar qualquer
mundo, em qualquer época através de suas decisões e ações, se tornando heroínas
e heróis de face negra diante de qualquer jornada que tomem como sua
(AIN-ZAILA, 2018, p. 13).
Tal premissa vai se mostrar uma chave
importante no decorrer da leitura das narrativas seguintes. Por ora, ainda
dentro desse espaço de aprendizado, a criança contempla, nas paredes do prédio,
alguns símbolos que ela mesma reconhece como Sankofa. No glossário ao final, a expressão é explicada como “Nunca
é tarde para voltar e apanhar o que ficou para atrás”. Então, é possível
compreender o título do livro, que sinaliza para a necessidade de reassumir e
reafirmar os legados culturais para a criação de um futuro melhor. Nas palavras
da mãe do jovem protagonista, “devemos aprender com quem veio antes e com a
história, pois não existe nada mais sábio que os dias que já se foram”
(AIN-ZAILA, 2018, p. 29).
Além do foco nas contribuições do passado,
presente e futuro das populações negras, esse conto também propõe uma
ressignificação das questões de gênero. O pai do menino está ativamente
engajado no seu cuidado e a mãe possui uma posição profissional de destaque,
sendo chamada pelo filho de “celebridade das letras”. Ainda que o menino tenha
uma família heterossexual, as outras crianças que encontra no centro cultural
estão acompanhadas por seus dois pais ou duas mães. Existe, portanto, a
sugestão de que um futuro mais satisfatório será aquele em que o racismo, a
misoginia e a lgbtfobia desapareçam, dando lugar a uma sociedade mais
igualitária em todos os níveis.
O afrofuturismo tem afinidade com a ficção
científica. Em Sankofia, há contos
bem caracterizados dentro desse gênero. A saga da Dra. Adimu em dois momentos
de sua vida é um claro exemplo. Em “Existência”, quando é uma jovem
astro-antropóloga a bordo de uma nave espacial, ela tem que enfrentar uma
espécie alienígena que toma os corpos e o conhecimento dos tripulantes. Como única
tripulante ainda não vencida, Adimu precisa evitar que os aliens utilizem a
nave para chegar à Terra, da qual ficam sabendo por meio dos pensamentos e
memórias dos que foram tomados. A abdução é descrita como a perda da identidade
em meio a um todo difuso e homogêneo:
no
chão estava a pilota chefe Abini sendo tomada do mesmo jeito que aconteceu com
os outros, primeiro, a espécime escorreu para o seu rosto e então começou a se
esvair para dentro de seus olhos, nariz, boca, escorregando como água e então
depois de algum tempo, vi em seus olhos que agora se tornara deles, delas,
todos e que tinham gostado do próximo passo evolutivo dado: sair da possível
água, eu não tenho dados que confirmem isso e locomover-se, ter mais sensações.
Eu já conhecia o processo, a mente resiste por aproximadamente trinta minutos e
depois cessa, a pessoa se levanta e então... É todos (AIN-ZAILA, 2018, pp.
48-49).
Adimu finalmente é atacada e precisa resistir
para continuar sendo ela mesma e não os outros “ela-ele-elas-eles-todos”. Para
não sucumbir, ela faz um inventário mental de sua ancestralidade, valores,
expectativas e trajetória de vida. Torna-se evidente que, para sobreviver, é
preciso afirmar a própria identidade, não só individual, mas também coletiva. E
são as diferentes identidades que fazem o mundo humano tão atraente para aquela
forma de vida que está dissolvida na indistinção:
aquele
não era o planeta deles e sim um tomado, onde as diferenças se existiam foram
absorvidas e então nada mais sobrou além de todos-eles-elas iguais, ou seja, os tiramos da neutralidade existencial e demos a eles o vislumbre de um mundo
cheio de possibilidades, bilhões para ser mais exata (AIN-ZAILA, 2018, p. 52).
Em seguida, na próxima narrativa, “Conexão”,
acompanhamos a Dra. Adimu numa fase mais madura de sua vida e carreira. Já está
há vários anos em terra, quando é acordada no meio da noite por helicópteros
enviados por autoridades governamentais para que siga com eles e tente decifrar
um código enviado por outros seres alienígenas. Trata-se, na verdade, de uma
resposta à mensagem mandada ao espaço pela própria Adimu vinte anos antes.
Nesse momento, Ain-Zaila explora não mais o cenário futurista de uma nave
interestelar, mas o de um grande laboratório tecnológico, reunindo estudiosos
do mundo inteiro e sediado em algum ponto da África, para onde inclusive até a
ONU se mudou: “Acredito que sermos o único continente sem vestígio nuclear
pesou na escolha. Nos tornamos uma potência em energia limpa” (AIN-ZAILA, 2018,
p. 59).
Na verdade, o próprio código enviado pelos
aliens vem na forma de um ideograma Adinkra, e a narradora-protagonista não se
furta a registrar a reação dos outros cientistas presentes ali, nem todos
africanos: “alguns estavam pasmos, outros e outras extasiados, eufóricos, mas
havia quem não estivesse gostando nem um pouco, talvez acreditassem que a
mensagem seria mais universal se fosse europeia, americana, mas ela era
africana” (AIN-ZAILA, 2018, p. 63). Dessa forma, a autora não escamoteia o
preconceito que, mesmo numa sociedade futura, ainda possa haver em relação à
África, seus conhecimentos e habitantes. O importante é que ele é vencido, e a
saída para toda a humanidade vem justamente da sabedoria africana, através da
mente científica da Dra. Adimu, mas também da Ordem dos Anciãos Africanos,
unindo, assim, tecnologia e ancestralidade, característica fundamental da
ficção científica afrofuturista.
Poderia ainda discorrer sobre cada uma das
outras narrativas que compõem o livro de Ain-Zaila, todas elas extremamente
envolventes e de grande potencial cinematográfico. Porém, vou encerrar esta
breve resenha com uma última referência à “Ode à Laudelina”, provavelmente o
conto que mais me impactou. Nele, diaristas negras têm que enfrentar uma
quadrilha que criou um aparelho para controlar suas mentes e explorar ainda
mais o seu trabalho dentro de um condomínio de elite. As profissionais são
descritas pela idade e principalmente pelo corte de cabelo, uma maneira talvez
de deixar explícita sua ascendência negra:
Amma, 23 anos, seu black power é
avermelhado, mas resolve trançar para não ter problemas e esconder a orelha
onde utiliza o aparelho auditivo, pois tem patroas... (AIN-ZAILA,
2018, p. 108)
Alexia R., 23 anos, dreads curto na altura
do ombro (AIN-ZAILA, 2018, p. 111).
Damara M., 28 anos, crespo curto, em
transição (AIN-ZAILA, 2018, p. 112).
Lena D., 34 anos, ama seu black power
curto (AIN-ZAILA, 2018, p. 112).
Também parece notável o fato de que é Amma, com
sua deficiência, que consegue quebrar primeiro o controle mental exercido sobre
elas, uma vez que seu aparelho auditivo de alguma forma se contrapõe ao fone de
ouvido utilizado para esse fim. Justamente o ponto mais fraco de Amma, aquele
que ela sentia que precisava esconder para não ser rechaçada pelas patroas, é o
que se torna o mais forte, conduzindo-a e às suas companheiras finalmente à
liberdade. Mais uma vez é um elogio à diferença que se encontra nesse belo
livro de Ain-Zaila, que merece ser lido sobretudo por jovens, negras e brancas, para
que possam, assim, refletir sobre a importância de se construir uma sociedade
mais igualitária no futuro. Mas é uma leitura fascinante e instrutiva também
para adultas que desejem reunir a sede de aventura com a busca do conhecimento num
único conjunto de narrativas.
Referência
AIN-ZAILA, Lu. Sankofia. Breves histórias sobre afrofuturismo. Rio de Janeiro:
Edição da autora, 2018.
https://www.amazon.com.br/Sankofia-Breves-hist%C3%B3rias-sobre-Afrofuturismo-ebook/dp/B07NHR1VP6 |
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