Três poemas de Danielli Cavalcanti | Uma poética da migração

 

"Porto". Tarsila do Amaral


Três poemas de Danielli Cavalcanti


Uma poética da migração



Embalagem tipo exportação 


Não é do ser humano ansiar por uma vida melhor?

Por que se nomeia a migração como o problema maior?

 

Privilégio é viver com segurança num mundo de disparidade

Sacrilégio é não usar seu privilégio para o bem da humanidade

Sortilégio é usar seu privilégio para a manutenção da desigualdade

Egrégio é lutar por um mundo sem privilégio

 

Privilégio é contemplar o Mediterrâneo

Enquanto ele se torna um cemitério

 

Quando o vento globalizado aponta e a migração desponta

Privilegiado é o lugar que a classifica como afronta

Onde é livre a circulação de mercadoria, mas não a de ousadia

Nesse mundo real de fantasia e de fazer conta

 

Como seria uma migrante tratada, se chegasse empacotada?

Uma ideia para a etiqueta:

Manusear com cuidado, contém dignidade!


"Só". Tarsila do Amaral


Há de se dar voltas ao sol

 

Há de se dar voltas ao sol

Para que os logradouros  da cidade lhe saúdem

As esquinas se arredondem

As ruas se aproximem de você

 

Há de se dar voltas ao sol

Para que as vozes não lhe causem cacofonia

E você esteja preparada para as quatro estações em um dia

 

Há de se dar voltas ao sol

Para aprender o nome das flores e dos pássaros

 Antes de se despedir deles novamente

 

Há de se dar voltas ao sol

Para se acostumar ao clarão das dez horas da noite

E à escuridão das quatro da tarde

 

Há de se dar voltas ao sol

Para que o vento friorento não lhe cause mais tormento

E você consiga apreciar a sinfonia da neve

 

Há de se dar voltas ao sol

Para traçar seu caminho coronário na cartografia da cidade

E quanto mais voltas, mais a resposta à pergunta: “de onde você vem?” permanecerá incompleta

 

Há de se dar voltas ao sol

Para chegar-se aos lugares aos quais se pertence

 

  

Geoliteratura

 

De que seria feito o meu discurso,

Se eu não tivesse cordas vocais latino-americanas?

 

Do que eu sentiria falta,

Se eu não tivesse coração latino-americano?

 

Por quais caminhos eu andaria,

Se meus primeiros passos não tivessem sido dados na América Latina?

 

De que seria feito o meu olhar,

Se eu não tivesse córneas latino-americanas?

 

Embora eu possa colocar lentes,

Minha leitura de mundo permanece latinoamericana


"A Lua". Tarsila do Amaral.




Danielli Cavalcanti, paraibana, mora na Europa desde 2004. Escreve sobre o viver sob o manto e entre a cerca da migração no blog jardimmigrante.wordpress.comLivros publicados: Flor de Linz (2016), bilíngue português e alemão; Quando eu outono, tu primaveras (2018); É sempre outono na migração, em português e alemão (2019). Infantis: Sopa de Sapo (2018), em português, dinamarquês e em alemão, e Lourito na Dinamarca (2020). Participação nas coletâneas: Mulherio das Letras - Prosa (2017),– Poesia (2018), Mulherio das Letras na EuropaOutubro literário (2018), Elas e as letras – Ed. Versejar (2018). Coletânea infantil: Com o pé na terra – Ed. Caleidoscópio (2018), Mulherio das Letras Portugal (2020).

 


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