Um trecho de romance de Sandra Godinho | "Tocaia do Norte"
Um trecho de romance de Sandra Godinho
Sinopse:
A história de Tocaia
do Norte é baseada em fatos reais que aconteceram nos meses de outubro e
novembro de 1968 no Amazonas e que tratam das circunstâncias misteriosas
envolvendo o massacre da expedição do Padre Giovanni Calleri e a matança de
quase 3000 índios Waimiris-Atroaris. Em Tocaia do Norte, o padre Chiarelli,
pertencente à congregação Missionários da Consolata, foi escolhido pela Funai
em 1968 para afastar os índios da área que os militares escolheram para
construir a rodovia BR- 174, ligando Manaus a Boa Vista. O religioso, escolhido
pelos governantes do Amazonas e Roraima, Funai e DNER para chefiar uma missão
de pacificação, leva consigo o seminarista João de Deus, dado à igreja como
paga de promessa por seus pais. Durante a expedição, desenreda-se uma trama de
anseios políticos e econômicos, em que fica evidente o interesse da elite
governante, dos militares do DER e da Funai regional para que o padre fosse
sacrificado e assim justificar o massacre de milhares de índios moradores da
área que atravancam as obras da estrada. João de Deus escapa do atentado, assim
como Paulo Dias, o mateiro encarregado de guiar a expedição (arregimentado
pelos militares para guiar a expedição para a armadilha fatal). Ao final da
frustrada empreitada, Paulo Dias e João se Deus travam um embate de forças, em que não há ganhadores. Esse livro é também o resgate de uma história real que
muitos querem ver esquecida.
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Prólogo
Às cinco da manhã, a hora do silêncio profundo, eu ainda cambaleava sonolento para o rio sem ter conseguido dormir, com a barriga empachada de novo. Uma névoa encorpada, quase pegajosa, cobria a água gelada. Escorreguei pelo barranco para pegar um pouco do rio escuro nas mãos e molhar o rosto. A ideia de pai e mãe de querer que eu acompanhasse o padre nunca me pareceu mais besta. Se queriam que eu aprendesse alguma coisa era a certeza de que não dava para essa vida.
Tomei um pouco d´água e espertei. Era muito novo para ter arrependimento, mas tinha. Não queria virar comida de bicho. Fui avisado - desde o começo - para não me afastar da expedição, podia ir até o rio tomar água e dar de cara com uma onça. Na mata da região, o que não faltava era bicho grande. Cobra engolindo homem maduro, jacaré arrastando criança ribeirinha na boca para sumir rio acima, sem falar nos peixes enormes ou pequenos, feito o candiru, que entrava pelo canal do mijo e te comia por dentro. Ai de quem tentasse tirar, o bicho abria a barbatana e ficava empacado, sem chance de se mexer. Só médico para abrir. Tudo pai falou. Que tomasse cuidado.
Tomei a picada de volta. O negrume pingando na pele, o céu querendo se rasgar com uma luz suave, o medo cravado no peito, gritando nos poucos fios de barba que despontavam até que ouvi um estampido próximo ao acampamento. Vai ver alguém atirou para afugentar bicho. Não queria dar de cara com nenhum e me apressei para retornar, com as folhas me lambendo a cara. Quando cheguei perto, ainda no meio das folhagens, avistei o padre já levantado da rede, curvado para frente, segurando a barriga, o corpo dobrado como se sentisse dor.
A primeira ideia que cruzou minha mente era que Chiarelli
passava mal que nem eu, uma lógica sem sentido porque o homem podia comer um
elefante sem sequer arrotar. Aproximei-me mais um pouco e o notei, caminhando
com dificuldade, seguindo em frente pela clareira, possivelmente atrás de algum
remédio que o grupo tinha trazido. Ou alcançar o rádio ou despertar os outros
expedicionários, foi quando uma flecha o atingiu pelas costas, na altura do
ombro esquerdo, fazendo-o dobrar-se ainda mais, caindo com o corpo atravessado
sobre a rede. Tudo aconteceu sem eu assentar direito o raciocínio no corpo
doente.
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