A poética que roça os sentidos | Banquete poético



VIII TERTÚLIA VIRTUAL/02

- por Marta Cortezão

 



“A linguagem é uma pele: esfrego a minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras em vez de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo [...] (a linguagem goza de tocar a si mesma); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, eu o acaricio, o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer durar o comentário ao qual submeto a relação. 

(Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso)

 

A VIII Tertúlia Virtual de 09 de outubro de 2020, realizada via perfil https://www.facebook.com/marta.cortezao, teve como convidadas as escritoras e poetas Diná Vicente, Divanize Carbonieri (Mato Grosso), Eliana Castela (Acre) e Jeovânia P. (Paraíba). Para cada tertúlia, há uma seleção de dez poemas de cada participante. É esta pequena fração de poemas, que chegou-me de cada pluma poética de longíquos lugares, revelou-se, atrevidamente, com louco desejo de roçar a linguagem-pele da poesia, de sentir a pele da e na palavra, a palavra na pele, no "entrepele" e de prolongar-se, em sensações, no toque sutil das pontas das palavras. E neste contato poético, foi-se saboreando metáforas, sentindo o gozo da língua que apalpa, se apalpa e se deixa apalpar... Ousadias? sim, e todas bem servidas neste banquete repleto de tempero poiesis! Sente-se à mesa e aguce os sentidos para poéticos versos, pois “é o gosto das palavras que faz o saber (sabor) profundo e fecundo” (Roland Barthes). E eis aqui um caleidoscópio de sabores e cores em poesia. Sirva-se à vontade!

O nosso banquete tem Paladar especial, com tinta fresca da pluma poética de Jeovânia P. que revela “Essa língua lambendo palavras (...) finca os dentes em uma vogal (...) mordisca uma consoante/ E se pega sorrindo/ Falando de boca aberta/ Enquanto come as palavras”, talvez para ressignificar os signos, os sentidos, a vida (re)vivida, o ser humano no mundo... talvez... já que alimentar-se de vocábulos para mastigar sentimentos ou lamber o verso para satisfazer a fome dos signos é atirar-se no abismo infinito da língua e também cometer antropofagia poética, saboreando carne-sentimento humano com apurado


Paladar Especial

 

Ah! Essa língua lambendo as palavras

Parece até que quer comê-las

Abre a boca

Finca os dentes em uma vogal

Mastiga

Mordisca uma consoante

E se pega sorrindo

Falando de boca aberta

Enquanto come as palavras

E o mundo vai se desfazendo

Perdendo os significados

Junto com seus signos

 

No plano dos sentimentos, a voz lírico-poética feminina empatiza com a dor de outras tantas mulheres, como podemos observar no poema Acorrentada:

 

Sentada na cadeira da ilusão

De quando em quando

Mastigando com os pés

Os dias

Lá vai ela acorrentada

Segue olhando pro chão

Pedindo desculpas

Por incomodar passando ali

Em qualquer lugar

Lá vai ela acorrentada

Nem saber os laços que lhe amarram sabe

Nem as grades que lhe cercam

Nem a escravidão em que vive

Lá vai ela acorrentada

Imune a dor da consciência

Imune a certeza de si

Protegida da realidade

Envolta a tudo que lhe definem como sendo certo

Bom

Verdadeiro

Embriagada de opiniões alheias

Lá vai ela acorrentada

Se soubesse

Se visse

Se descobrisse

Se

Ah, se!

Se um dia acordasse

Se libertaria

Mas enquanto não acorda

Lá vai ela acorrentada

 

A não-consciência da dor se escancara nestes versos, a voz lírica que mastiga dias iguais está presa por alienação à realidade, porque resignada à sua condição de “acorrentada”, porque perdida na própria ignorância de si mesma e do mundo à sua volta, porque também “embriagada de opiniões alheias”. Mas talvez haja uma ponta de esperança em direção à liberdade “mas enquanto não acorda/ Lá vai ela acorrentada”. Nunca é tarde para abrir os olhos e deixar-se devorar pela ânsia de liberdade, pelo voraz paladar dos desejos que nos habita o submundo.

 É preciso ir fundo, saborear versos, mergulhar no campo visual, alcançar o âmago das imagens que vicejam na linguagem e ainda flertam com as cinco ações corporais dos sentidos (ver, tocar, ouvir, cheirar e degustar), lugar onde moram as metáforas, cuja principal função, segundo Garcia Lorca, é unir mundos totalmente antagônicos por meio de um salto equestre que a imaginação propicia. Feito o fio de Ariadne, tecido pela astúcia poética de Diná Vicente, que nos faz arrepiar os sentidos quando um hálito aterrador salta da boca titânica de Cronos e assim vocifera, no poema Alma do Tempo:


Um grito ecoa

Na alma do tempo,

Em teu ventre ressoa

O tinido do vento.

 

O brado fecundo

Repousa aqui,

Pleno e profundo

Se abriga em ti.

 

No giro da roda

Tudo se encontra,

O amor prevalece,

O fio não se rompe.

 

Encontro de almas,

Caminho sem fim.

Ora vibra distante,

Ora dentro de mim.

 

Fecundo brado, “pleno e profundo” que traz o vento que sacode as certezas no ventre do cosmos; em vez da ordem, a desordem, mas “o amor prevalece/ o fio não se rompe”, o caos dá lugar ao cheiro de ventania viçosa e verde da vida que volta a vibrar os pés métricos, aqueles plenos de tons sentimentais que o poeta navegante lavrou enquanto a âncora, por necessidade, precipitava-se ao mar:  

 

Âncora e Verso

 

O navegante lançou a âncora

O poeta lavrou um verso

A âncora firmou o barco

O verso principiou um marco

 

Verso exarado a fio

Alegra um coração partido

Âncora em mar bravio

Salva o navegante perdido

 

Âncora firme e certeira

É sinônimo de segurança

Verso em prosa fagueira

Preenche o ser de esperança

 

Assim o verso se perpetua

Com nuance colorida

A âncora no barco atua

Como milagre da vida.

 

Ó, âncora que perpetua versos, rasgando a lâmina afiada de azul-mar! Revele-nos como ancorar o velho barco da vida e afagar imensidões azuis poéticas e viver o “milagre da vida” enquanto saboreamos bom vinho dionisíaco neste banquete!

 

Esta linguagem que flameja desejo pelo poder criativo, pela capacidade linguístico-comunicativa do verso e que serve suculentos significados outros ao/à intrépido/a e sagaz leitor(a), é oferecida pelo menu degustativo da poética que vem do Acre, na poética de Eliana Castela, numa denúncia de sabores e na sensibilidade entrecortada pela dor cortante da voz lírica do poema que vê a ganância humana destruir o pouco que nos resta de nosso planeta-aldeia:

 

Bacaba e Patauá

 

Minha aldeia está escassa

De valiosas palmeiras

Na feira não tem bacaba,

isso não é brincadeira!

E nas matas só se encontra

Uma aqui, outra acolá…

 

Mas quem sumiu de uma vez

Foi o fruto gorduroso,

Cujo nome é patauá.

Seu azeite era um colosso

Fazia parte da mesa,

No jantar e no almoço.

 

Só resta agora o açaí,

Este com grande fartura

Talvez, porque o açaí

Seja uma fruta de cor

Ora só, mas que besteira…

Não tem fruta incolor.

 

É que o açaí, minha gente,

Caiu na boca do mundo,

Patauá e a bacaba

Não puderam chegar lá

Foi grande o desmatamento,

A bacaba, quase acaba

E o patauá, ao Deus dará…

 

A voz lírica do poema ainda nos dá uma aula sobre a diversa flora amazônica e continua a denunciar mais atrocidades da lama do progresso, agora na cor vermelha do sangue “daqueles que pouco ou nada,/ da terra lucraram”, a dor se corporifica, latente, nos versos de Barragens: “Depois de virar a terra pelo avesso/ E de suas entranhas arrancar o ferro,/ a ferro (...) Rompem-se as barragens/ E tudo que não importa será lama:/ Homens, mulheres, crianças, peixes, plantas”:

 

Barragens

 

Depois de virar a terra pelo avesso

E de suas entranhas arrancar o ferro,

a ferro,

É hora de ser avesso à terra

E a toda vida que nela há.

 

Acumula-se os rejeitos

Para com eles soterrar

Não só a própria terra,

Que misturada ao minério,

Rejeitado e descuidado,

Tudo arrastará para o barro,

de onde viemos

e retornaremos.

 

Rompem-se as barragens

E tudo que não importa será lama:

Homens, mulheres, crianças, peixes, plantas...

Rompem-se as barragens

No momento em que,

Empobrecida, a terra é rejeito.

Rompem-se as barragens

E com elas os sonhos

Daqueles que pouco ou nada,

Da terra lucraram.

 

E, na poética de Divanize Carbonieri, roçamos as correspondências analógicas que encantam o olhar que perscruta o verso; as transferências poéticas e criativas de significados, onde um significante flerta e enrosca-se a outros sentidos, como a implícita e descarada comparação: “dança” e “elipse” desenham potente metáfora para falar do “suicídio”: “para oscilar no nada pendurada pelo pescoço/ uma elipse desenhada com as pernas/ última dança na letal encruzilhada”, a morte. Degustemos os versos no compasso poético do poema Dança:  


tanta poeta suicida patinou nessa senda

como posso pensar em me manter de pé

semear com pedras o seio seco do arroio

a haste mirrada da espiga ressequida

árido piso de troncos ocos e retorcidos

muito ansiada gota que não mais sacia

resta ascender ao patíbulo como todas as

outras arrastando amarras e mordaças

atirar-me súbito do cadafalso para

oscilar no nada pendurada pelo pescoço

uma elipse desenhada com as pernas

última dança na letal encruzilhada

 

A poética de Carbonieri também se esfrega e se (des)integra, desavergonhadamente, nas palavras para criar, via poeisis, uma definição lírica de "amargura". Neste poema, nos revela a profunda amargura da que se alimenta esta voz poemática; ela se enche de silêncios penetrantes para logo implodi-los “como feixes de dinamite” e assim perpetuar armarguras, em cadeia, que, como numa espécie de contagio, através de infinitas partículas de palavras dissimuladas no ar, estendem-se a outros sujeitos, “alguns ficam adelgaçados até esgarçarem / outros de tão rotundos rompem em pó”:

 

Amargura

 

a despeito do esforço empreendido

para saturar de silêncio todas as fendas

as farpas impediram o pleno desenlace

friccionaram as palavras a ponto

de implodi-las como feixes de dinamite

miríades de fragmentos emplastraram o ar

que se impregnou imediatamente de amargura

tudo o que é pronunciado permanece

à deriva entre os seus enunciadores

preenchendo a espessura dos afetos

alguns ficam adelgaçados até esgarçarem

outros de tão rotundos rompem em pó

 

Eis aqui uma pequena fração poética do que apreciamos na VIII Tertúlia Virtual. Espero que estas simplórias palavras ditas aqui, tenham lhe aguçado também os cinco sentidos poéticos e lhe possibilitado desfrutar deste singular banquete preparado à base de uma diversidade de olhares, de toques, de sons, de cheiros e de sabores/saberes. São poéticas que apenas aspiram ganhar sabor no paladar voraz de ávidos/as leitores/as. Celebremos com Dionísio  o prazer ébrio de mais uma tertúlia poética virtual, ao som dos instrumentos juruparis! 


Referências

IV Informal Valencia. El poeta, la metáfora, el pueblo y los sentidos. Disponível em https://www.informavalencia.com/2017/06/02/el-poeta-la-metafora-el-pueblo-y-los-sentidos/. Acesso em 08/10/2020.

 

Colunista Neurônio. Roland Barthes o saber com sabor. Disponível em https://newronio.espm.br/roland-barthes-o-saber-com-sabor/. Acesso em 08/10/2020.




Comentários

  1. Que honra, meus poemas sendo parte dessa bela composição poética. Agradecida!

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    1. A honra também é nossa. Sigamos juntas, Poeta. Sempre!🥰😍😘

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  2. Texto primoroso o seu, nada simplório! Verdadeiro banquete de saber e sabor.

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