Divina Leitura | O mito da beleza por Naomi Wolf e suas consequências para a vida das mulheres contemporâneas

 

Coluna 09

O mito da beleza por Naomi Wolf e suas consequências 
para a vida das mulheres contemporâneas*


Amarildo Bertasso, Betania Vasconcelos da Cruz Fraga, Cassiana Parissenti, Dayanna Vieira de Jesus, Divanize Carbonieri, Júlia Rodrigues Nunes Café, Julianna Alves Bahia, Lucas Santos Café, Lucy Miranda do Nascimento, Marcella Duarte Vieira Pessoa, Monica Maria dos Santos, Regina da Silva Ferreira, Tatiane de Oliveira, Vanessa Pincerato, Vinícius Ferreira dos Santos, Wesley Henrique Alves da Rocha


O mito da beleza (1992) de Naomi Wolf é um desses livros seminais do feminismo que deveria ser bem mais conhecido. Nele, a autora apresenta a exigência da beleza inatingível como uma reação do patriarcado aos avanços conseguidos pelas feministas, principalmente a partir dos anos 70. Desse período em diante, pelo menos as mulheres ocidentais de classe média já haviam alcançado muitos direitos em diversas esferas, como a educação superior, o mundo dos negócios e o controle da reprodução. A liberdade que esse estado de coisas acarretou para o gênero feminino era algo sem precedentes na história humana.

Mas concomitantemente a isso, os padrões de beleza feminina se tornaram cada vez mais pesados, rígidos e inalcançáveis para a esmagadora maioria das mortais. Modelos de revista e atrizes, ainda que tenham suas fotos retocadas por tecnologias de alteração de imagem mais e mais potentes, tornaram-se o modelo para toda e qualquer mulher, não importando sua atividade ou objetivo de vida.

As mulheres bem-sucedidas dos países desenvolvidos foram e são convencidas a gastar grande parte de seus rendimentos em tratamentos de beleza e procedimentos estéticos, muitas vezes inócuos ou de resultado duvidoso. Como o poder econômico é o meio mais direto para outros tipos de poderes no regime capitalista, esse desvio de capital torna-se mais um fator para a diminuição da autonomia e influência das mulheres.

Além disso, a insegurança causada pela insatisfação constante com a própria aparência, obtida pela massificação de imagens de beleza padronizada e perfeita, afeta a autoestima feminina. Na sociedade competitiva em que vivemos, isso se configura como mais uma desvantagem para aquelas que já contam com inúmeras outras formas de opressão e apagamento.

Wolf é categórica quanto aos motivos por trás da imposição do mito da beleza sobre as mulheres. Não é uma exigência da sexualidade, como uma pseudociência tenta constantemente nos fazer crer. É, na verdade, um projeto político para deter o desenvolvimento das mulheres e dificultar a sua entrada nas esferas efetivas de poder. Trata-se de um esforço para manter o status quo do domínio masculino. Ademais, e não menos importante, é uma estratégia do capitalismo para vender seus produtos às custas da infelicidade e estagnação de um numeroso contingente de seres humanos.

Nesse livro, Wolf examina o mito da beleza sob diversos aspectos, discorrendo sobre sua atuação no mundo do trabalho, da cultura, da religião, do sexo, da fome e da violência.

 

Trabalho

 

No capítulo “O trabalho” sob uma perspectiva das imagens, Wolf traz exemplos de profissões que simbolizam e ao mesmo tempo reforçam a qualificação de beleza profissional no âmbito geral. Nesse sentido, dentro de um sistema capitalista, o mito da beleza encontra uma estrutura de exploração, não apenas na mão de obra dócil e barata, mas também na exploração do amor-próprio das mulheres. Dessa maneira, ele se perpetua no mundo do trabalho, demandando que as mulheres se enquadrem em um modelo de aparência que reforça a sua opressão.

Dentro desse contexto, as exigências são irracionais, vingativas e autoritárias de um padrão “ideal de beleza” por parte dos empregadores. Tais exigências são verificadas a princípio em profissões como apresentadoras de telejornais, modelos, garçonetes, aeromoças e coelhinhas da Playboy. Porém, outras profissões mais comuns acabam seguindo o mesmo esquema.

Cabe lembrar que foi na década de oitenta que as mulheres invadiram maciçamente o mercado de trabalho e, segundo Wolf, o percentual de mulheres com empregos nos Estados Unidos subiu de 31,8%, após a Segunda Guerra Mundial, para 53,4%, em 1984. Assim, na década de 1980, tornou-se evidente que, à medida que as mulheres foram ficando mais relevantes no mercado das profissões, também a beleza foi adquirindo maior importância. Quanto mais perto do poder as mulheres chegam, maiores são as exigências de sacrifício e preocupação com o físico.

Nessa perspectiva, a qualificação da beleza teve início juntamente com a emancipação feminina, ampliando-se de forma a acompanhar a liberação profissional das mulheres. Dessa forma, o mito da beleza foi institucionalizado nas últimas décadas como um transformador entre as mulheres e a vida pública. O mercado de trabalho refinou o mito da beleza como uma forma de legitimar a discriminação das mulheres no emprego.

É importante ressaltar que as mulheres assumiram ao mesmo tempo os papéis de dona-de-casa, de profissional que faz carreira e de profissional da beleza. Assim, a qualificação de beleza profissional foi institucionalizada extensamente como condição para a contratação e promoção de mulheres. Numa profissão de alta visibilidade, por exemplo, a "beleza" de uma mulher se tornou uma qualificação legítima para o emprego.

A beleza, a magreza, o bem vestir e o bom gosto passaram a constituir a autoridade de uma mulher. Convém apontar que a qualificação da beleza profissional empobreceu as mulheres sob o ponto de vista material e psicológico, deixando claro que um reduzido amor-próprio na mulher pode ter um valor sexual para alguns indivíduos, mas tem um valor financeiro para toda a sociedade.

A imagem insatisfatória que as mulheres têm do seu físico nos dias de hoje é muito menos consequência da atração entre os sexos do que das necessidades do mercado. Portanto, o mito da beleza gera nas mulheres uma redução do amor-próprio, com o resultado de altos lucros para as empresas, deixando claro que a questão é política e econômica e não sexual.

Por conta disso, a autora pontua três mentiras que são passadas e repassadas para as mulheres em relação ao mercado de trabalho. A primeira é a de que a beleza é uma qualificação legítima, ou seja, mesmo diante de certificações, experiências e habilidades suficientes para se candidatar a uma vaga de emprego, tais competências não bastam, uma vez que a “beleza” tem que ser somada ao seu currículo também.

Outra mentira difundida é a de que a beleza é um ideal de todas as mulheres, sendo que todas devem buscar sempre se manter em forma, ser jovens e esbeltas, isto é, todas devem pensar e agir da mesma forma de acordo com os discursos difundidos. A última mentira é a de que não foi graças ao movimento feminista que a mulher conquistou mais espaço, pelo contrário, a pessoa é levada a acreditar que o feminismo é um atraso à conquista de seus objetivos, minando as bases que ela teria para se proteger coletivamente de um ambiente tóxico no trabalho, por exemplo.

Assim, quando as mulheres conseguiram abrir brechas no poder dominado por homens, os quais mandam e desmandam na dinâmica do mundo do trabalho, foi necessário criar mecanismos de controle sobre elas, e a beleza foi um deles. Não foi à toa que o ambiente de trabalho se tornou um espaço de aniquilação da autoestima e dos desejos femininos, além do fato de que elas são manipuladas a acreditar que devem se sentir responsáveis pelo próprio fracasso.

 

Cultura

 

De forma geral, Wolf apresenta os obstáculos subjetivos, materiais/físicos aos quais as mulheres são submetidas todos os dias, em relação aos padrões estéticos estabelecidos e naturalizados socialmente, o que muitas vezes, as leva à exaustão. Algumas vezes, leva mesmo à morte. No capítulo “A Cultura”, a autora questiona: “Será sua identidade (da mulher) tão fraca assim? Por que elas acham que devem tratar ‘modelos’ - manequins - como se fossem ‘modelos’ - paradigmas? Por que as mulheres reagem diante do ‘ideal’, qualquer que seja a forma que esse ideal assuma no momento, como se se tratasse de um mandamento inquestionável?” (WOLF, 1992, p. 76-77).

Como resposta, Wolf justifica que não se trata de fraqueza, mas da premeditada e sistemática massificação de imagens impostas como ideais por uma organização social voltada para o domínio masculino. Paralelamente, o procedimento ainda busca separar a beleza da inteligência feminina, postulando que uma mulher não pode ter essas duas características ao mesmo tempo. Nas palavras da autora, “desde o século XIV, a cultura masculina silenciou as mulheres decompondo-as maravilhosamente” (WOLF, 1992, p. 77). As revistas, e aqui podemos acrescentar também as mais atuais mídias digitais e redes sociais em geral, reforçam essa “cultura de massa das mulheres. Uma mulher lendo Glamour está segurando nas mãos a cultura de massa orientada para a mulher” (WOLF, 1992, p. 91-92).

Por todo o capítulo, a autora cita muitos exemplos de revistas, anúncios de publicidade e produções das indústrias pornográficas, ressaltando o lucro que o mito da beleza traz para todos esses empreendimentos (por meio de produtos e procedimentos para emagrecimento e rejuvenescimento, por exemplo).

A linguagem utilizada nesse capítulo (e no livro, como um todo) é de fácil compreensão. O texto proporciona às leitoras e leitores diversificadas percepções e interpretações sobre a problemática abordada. De acordo com a trajetória e o lugar social da leitora ou do leitor, o texto proporcionará análises diferentes. Mulheres e homens, pretxs e brancxs, farão análises distintas, pois cada indivíduo carrega experiências e trajetórias traçadas que lhe são próprias. Suas vivências proporcionarão significados específicos ao que foi lido, sendo que tais significados darão vida ao texto.

O mito da beleza persegue as mulheres que são vítimas de uma grande estrutura de poder. Apesar ter sido publicado na década de 90, o texto nos remete a pensar sobre as diversas formas de opressão que atingem as mulheres na atualidade, sobretudo, as opressões ligadas aos interesses do mercado. Apesar de vivermos em uma sociedade marcada pela colonialidade, que revela a existência do colonialismo e do patriarcado no atual padrão de poder mundial, devemos destacar que, para Wolf, o capitalismo acentua as relações de opressão sobre as mulheres, pois o mito da beleza está diretamente ligado aos fortes interesses econômicos da sociedade neoliberal.

Se olharmos para o nosso redor, o mito da beleza acompanha as mulheres de forma próxima e impiedosa, seja ao postar uma foto nas redes sociais ou ao sair de casa, seja ao receber alguma visita ou ao ir ao trabalho. O mito da beleza naturaliza relações sociais que são historicamente construídas. Torna universal aquilo é pontual de uma cultura específica. A partir da naturalização de aspectos da vida social, segundo Wolf, o mito da beleza está presente em todos os espaços da vida da mulher. Independentemente de quem seja a mulher, ela sempre será cruelmente confrontada com o mito da beleza.

O mito da beleza se torna uma espécie de discurso a serviço do capital. Investidores, marqueteiros, publicitários e empresários trabalham em conjunto para criar um padrão cultural que retira a singularidade das mulheres, fazendo com que elas percam o direito de escolha sobre suas trajetórias de vida. O mito provoca uma neurose constante que adoece e aprisiona fisicamente e mentalmente as mulheres de todo o mundo. O mito procura destruir toda e qualquer tentativa de construção positiva coletiva e social entre as mulheres, buscando estimular a concorrência e a divisão entre elas. Mas o ódio não é construído apenas de uma mulher para as outras, mas, principalmente, como um ódio voltado para si mesma, seu corpo e suas experiências de vida.

 

Religião

 

Wolf traz, na quarta parte da obra, uma discussão sobre “A religião”. Segundo a autora, “os Ritos da Beleza recentemente assumiram a tarefa que a tradicional autoridade religiosa já não conseguia cumprir com convicção. Ao instilar nas mulheres uma força policial interior, a nova religião muitas vezes se sai melhor no controle delas do que as religiões mais antigas” (WOLF, 1992, p. 137).

Wolf nos mostra o mito da beleza como algo a ser rigorosamente seguido, como uma premissa religiosa, tendo as revistas de beleza como um evangelho. Sendo assim, o capítulo é dividido em partes que são chamadas pela autora de pilares, os quais fazem parte da “estrutura da nova religião”. Entre eles temos: A criação; O pecado original; Como a alimentação tomou o lugar do sexo; O ciclo da purificação; Memento Mori; A luz; O culto do medo de envelhecer; O culto do medo da gordura e, por fim, uma discussão sobre as consequências sociais da nova religião.

Nesses tópicos, a autora toma como texto base a Bíblia e faz referências principalmente ao livro de Gênesis, ao falar da criação. Também menciona as festas religiosas, que representam os momentos de purificação dos pecados, sendo que, para a purificação e perfeição da beleza feminina, essas festividades foram substituídas pelos momentos dedicados aos Spas e às cirurgias estéticas, conservando-as em casa por longos períodos pós-cirúrgicos.

O ponto central é a discussão sobre o corpo da mulher, algo que ela sempre deve cuidar. Nunca é cedo ou tarde demais para se iniciar nos ritos de beleza, pois a mulher nunca deve desistir de buscar a perfeição, por mais que ela seja sempre veiculada como inalcançável. Dessa forma, a mulher carregará a culpa de nunca ser ou estar à altura do que a sociedade espera, do que a nova religião prega. Assim, sentir que sempre há algo de errado com seu corpo é o artigo de fé dado às mulheres, em que o principal objetivo é o controle para que elas sejam mantidas dominadas e não usufruam totalmente de todas as recentes liberdades conquistadas.

 

Sexo

 

Wolf, ao relacionar o sexo e o mito da beleza, exemplifica como as imagens veiculadas pela indústria pornográfica transformam as mulheres em objetos, pois são imagens que as expõem em poses degradantes que ressaltam o sadomasoquismo. Isso tem uma dupla consequência: faz com que o homem seja mais violento com a mulher e, ao mesmo tempo, que a mulher também se torne mais violenta consigo mesma. Tal artifício violento surge para contrabalancear as recentes conquistas adquiridas pelas mulheres e mais uma vez colocá-las em situação de subalternidade.

É pertinente dizer como a relação heterossexual desigual mantém as estruturas de poder, haja vista que a insatisfação humana gera lucros com o consumismo exacerbado dos objetos da pornografia, os quais são constantemente mutáveis. Desse modo, o sexo propaga uma beleza sobre-humana que distancia cada vez mais homens e mulheres, o que, segundo a autora, explicaria a quantidade de relacionamentos instáveis e divórcios na atualidade.

Outra questão posta pela autora é como a pornografia da beleza reprime a sexualidade feminina porque é propagado que a satisfação sexual é alcançada somente por mulheres “belas”. Com isso, cada vez mais a mulher “normal” se afasta do seu corpo e da busca de prazer e autoconhecimento sexual.

Há uma assimetria na educação sexual desde a infância que propaga mentiras sobre o corpo de homens e mulheres, que instaura tabus e censuras acerca da sexualidade da mulher, articulando uma cultura sexual negativa que só gera imagens violentas a respeito delas. A partir disso, meninos e meninas aprendem que a relação sexual está relacionada à violência, ao sexo forçado, o que, infelizmente, faz da violência contra as mulheres o crime mais comum no mundo, sendo que muitas vezes os agressores são conhecidos ou fazem parte da família.

Um dos poderosos mecanismos de controle do patriarcado em relação à emancipação feminina destacado por Wolf é a repressão da sexualidade das mulheres, durante muito tempo preconizada pelas organizações religiosas, que já temiam a força do conhecimento de si desencadeado pelo acesso delas à liberdade sexual.

Segundo a autora, a repressão exercida pela igreja, na modernidade, ganha o invólucro da indústria da beleza, que se apoia fortemente na publicidade para a disseminação da ideia de que o prazer feminino só pode ser alcançado a partir da obtenção de um corpo dentro dos padrões estéticos estabelecidos que se deixe ser subjugado. Ela destaca que esses novos mecanismos de controle da força social feminina coincidem com a segunda onda do feminismo. A década de 1970 vai ser marcada por um forte crescimento da pornografia da beleza.

Essa vertente da pornografia deturpa a representação do corpo feminino e associa o prazer e a realização sexual à violência e à objetificação do corpo feminino. Em vez de vermos imagens do desejo feminino ou que atendam ao desejo feminino, vemos simulações com manequins vivas, forçadas a contorções e caretas, imobilizadas e em posições desconfortáveis sob holofotes, quadros profissionais que revelam pouco sobre a sexualidade feminina. Vemos apenas produtos humanóides idênticos, inspirados em corpos femininos.

A primeira parte do texto traça uma linha histórica do crescimento do sadomasoquismo feminino e da pornografia da beleza evidenciando como a moda, a publicidade e o cinema contribuem para a construção desse modelo de sexualidade marcada por diversas formas explícitas e subliminares de violência contra o corpo feminino.

Outro ponto destacado pela autora são as relações de poder estabelecidas a partir do nível de exposição dos corpos masculinos e femininos. Ela nos chama atenção para o entendimento dos conceitos de vulgaridade a partir da exposição de dados de diferentes países. Neles, a imagem do nu masculino é tratada com restrição e censura enquanto as cenas de violência sexual contra mulheres continuam com ampla circulação e são encaradas com normalidade, situação que banaliza e coloca em descrédito as denúncias de violência contra a mulher e provoca danos irreparáveis à educação sexual dos mais jovens. Segundo Wolf, “[p]rossegue o debate para se saber se a pornografia clássica torna os homens violentos para com as mulheres. A pornografia da beleza, porém, está nitidamente tornando as mulheres violentas consigo mesmas” (WOLF, 1992, p. 187).

 

Fome

 

Wolf inicia o capítulo sobre a fome de uma forma que nos faz repensar o padrão de beleza feminino. Ela nos mostra as regras impostas às mulheres pela sociedade e pelo sexo masculino. Tais regras se diferem daquelas aplicadas aos homens. A autora nos chama a atenção para dois transtornos alimentares que sondam cada vez mais a vida da mulher contemporânea: a bulimia e anorexia. Destaca ainda várias práticas comuns realizadas por jovens que sofrem desses problemas, como provocar vômito depois de comer, tomar laxantes, manter-se longas horas em jejum, fazer grandes restrições alimentares, além de evitar encontros e comemorações sociais, justamente para não comer em excesso. Tudo isso para conseguir se manter dentro dos padrões de beleza estabelecidos pela sociedade: um corpo cada vez mais magro, muito difícil de manter, visto que exige o consumo de pouquíssimas calorias diárias.

Segundo a autora, "a restrição calórica prolongada e periódica" é um meio de não só tentar frear o desempenho das mulheres no mercado do trabalho, mas também fazer com que elas se sintam incapazes, diminuindo o amor-próprio que adquiriram após muitas lutas para conquistar o seu espaço na sociedade.

Wolf afirma ainda que “o hábito da dieta é o mais possante sedativo político na história feminina. Uma população tranquilamente alucinada é mais dócil” (WOLF, 1992, p. 248). A questão não está relacionada à saúde da mulher, mas à tentativa de dominá-la de alguma maneira, tirar-lhe o foco, fazê-la parecer superficial. Nesse sentido, priva-se a mulher da vida que deseja, da maneira em que se sente bem. Tais comportamentos passam despercebidos, como se fossem naturais e não impostos pela sociedade, ditadora do padrão de beleza.

Para Wolf, a pressão do corpo e da dieta é uma reação aos avanços do movimento feminista e de uma sociedade que não visa a que as mulheres assumam posições que incomodem o patriarcado.

 

Violência

 

A medicina vitoriana considerava que a mulher, por ser doente, deveria ser tratada com purgantes, remédios, banhos de assento e sanguessugas. Até o início do século XX, a gravidez era para a mulher um perigo mortal, assim como outras doenças consideradas “femininas”. Segundo a autora, em um mundo cercado pela dor, ser mulher era uma sina que todas carregavam. Com o surgimento da pílula anticoncepcional e os avanços da medicina, ao invés de se tornar livre, a mulher se viu frente a uma nova doença: a ausência da beleza em um corpo fora do padrão. No mercado da beleza, não existem proibições nem restrições, o que se fizer a uma mulher em nome da beleza se torna aceitável. Na era da cirurgia plástica, não há o que não possa ser feito, todos os tipos de cirurgia estão disponíveis para todos os corpos e todos os bolsos.

Assim, novamente a mulher passa a ser controlada e subjugada. Se antes sua existência era baseada em sua fertilidade e capacidade de gerar descendentes a seus maridos, agora, seu corpo passa a ser um objeto. Um objeto do desejo masculino, que deve estar sempre disponível para o sexo. Em uma nova versão da donzela de ferro, o mito da beleza não só adoece as mulheres fisicamente, mas mentalmente. De acordo com a autora, nem os avanços da medicina e da sociedade foram capazes de livrá-las de sua sina, afinal, é preciso sofrer para ser linda.

Para Wolf, o mito da beleza é um tipo de violência contra as mulheres. A sociedade machista e patriarcal trabalha para a manutenção da construção social da “inferioridade feminina” e, com o passar do tempo, essa manutenção vai exigir a criação de novos mecanismos de controle. No passado, o sexo, a gravidez e a menstruação foram mecanismos de manutenção da dominação feminina, hoje, o mito da beleza seria esse mecanismo. A criação de um padrão de beleza inalcançável vai deixar as mulheres insatisfeitas consigo mesmas, e essa insatisfação vai garantir que as engrenagens do patriarcado continuem se movimentando.

O mito da beleza seria como uma espécie de voyeurismo masculino; o padrão de beleza criado pelos homens vai moldar o corpo feminino, colocando esse corpo num lugar de servidão ao desejo do homem. Dessa forma, o objetivo real de uma sociedade capitalista, patriarcal, machista e racista, ao criar o mito da beleza, é controlar o corpo feminino e transformar a mulher no “objeto perfeito” para o prazer masculino, utilizando-se do mito da beleza para manipular as próprias mulheres, que, “de livre e espontânea vontade”, vão se moldando nessa direção e acreditando que as intervenções plásticas foram escolhas próprias.

A “escolha” da mulher pela adequação ao padrão/mito da beleza vem acompanhada da garantia da sobrevivência, da identidade feminina e de uma posição minimamente igualitária na sociedade. Escolher conviver consigo mesma implica abrir mão de tudo isso. As mulheres só conseguirão conviver com elas mesmas e romper o mito da beleza quando não mais houver ameaças de invisibilidade e de redução de seu valor social.

 

Para além do mito da beleza

 

Na última parte de seu livro, Wolf lança questionamentos sobre nossas possibilidades de construir um novo futuro, livre da imposição do mito da beleza. Primeiro, é preciso uma conscientização a respeito da “promoção interesseira de ideais”:

 

Em essência, o mito da beleza não está ligado à aparência, às dietas, à cirurgia ou aos cosméticos, tanto quanto a Mística Feminina não estava ligada ao serviço doméstico. Ninguém que seja responsável pelos mitos da feminilidade a cada geração realmente se importa com os sintomas.

Os arquitetos da Mística Feminina não acreditavam de verdade que um chão que parecesse um espelho indicasse uma virtude fundamental nas mulheres. Durante a minha própria vida, quando a ideia da irregularidade psíquica de origem menstrual foi inabilmente ressuscitada como um último recurso para retardar as exigências do movimento das mulheres, ninguém estava realmente convencido da incapacidade menstrual por si. Da mesma forma, o mito da beleza não se importa nem um pouco com o peso das mulheres. Ele não quer saber da textura do cabelo ou da maciez da nossa pele. A nossa intuição nos diz que, se todas voltássemos amanhã para dentro de casa e disséssemos que na verdade não estávamos agindo a sério, que não precisamos dos empregos, da autonomia, dos orgasmos, do dinheiro, o mito da beleza se afrouxaria de imediato, tornando-se mais confortável (WOLF, 1992, p. 362).

 

O mito da beleza, tal como está posto, prejudica a consideração da fala das mulheres. Não importa qual seja a aparência de uma mulher, ela sempre será usada para se desconsiderar a importância do que diz, sobretudo se for uma fala questionadora do mito da beleza. Para frustrar o mito, é preciso recusar a ideia de que a aparência de uma mulher é o seu discurso. Segundo Wolf, se as mulheres se ouvirem umas às outras fora dos limites cerceadores do mito da beleza, um importante passo político será dado.

Também é necessário ir além da culpa, que aprisiona as mulheres ao mito da beleza e à cultura do estupro. O mito da beleza substitui elementos importantes da consciência feminina. Para superá-lo, a mulher deve se esforçar para perceber o que ele tenta esconder. A culpa é uma tentativa de desviar a atenção da mulher para o que realmente importa para que ela tenha uma vida plenamente satisfatória.

Para Wolf, a terceira onda do feminismo tem que se voltar para o combate do mito da beleza em todos esses aspectos analisados por ela. Esse tem que ser um movimento de colaboração entre diversas gerações e grupos sociais de mulheres. O mito da beleza não faz com que nenhuma saia ganhando, mas com que todas percam. O que fará com que todas saiam ganhando é a recusa terminante de se fazer parte da estrutura de dominação que ele impõe.

 

Referência

 

WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Tradução: Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.


* Resenha de autoria coletiva produzida como uma das atividades da disciplina "Transculturalidades, pós-colonialidades e decolonialidades" do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL) da Universidade Federal de Mato Grosso.


http://bibliopreta.com.br/wp-content/uploads/2018/01/O-mito-da-beleza_-como-as-imagens-de-beleza-s%C3%A3o-usadas-contra-as-mulheres-1.pdf




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