Duas crônicas de Ana Paula Campos | Reflexões sobre leitura
Bisa Butler |
Duas crônicas de Ana Paula Campos
Reflexões sobre leitura
QUAIS SÃO SUAS REFERÊNCIAS LITERÁRIAS E O QUE ISSO DIZ SOBRE VOCÊ
O
período de pandemia exigiu de nós o isolamento social e isso intensificou a
quantidade de brincadeiras no Facebook. Uma em particular me chamou atenção. Um
internauta organizava uma lista com vários/as autores/as e convidava outros/as
para fazerem o mesmo. Vários/as amigos/as postaram suas listas e eu resolvi
postar a minha também. Analisando as listas, comecei a questionar o porquê de a
maioria dos autores selecionados serem homens brancos.
Lancei,
então, um desafio na rede, solicitando que todos/as revissem suas listas e
analisassem quantas mulheres estavam presentes e quantos negros/as foram
lembrados. O que deveria ser um exercício de percepção das influências do machismo
e racismo estrutural em nossas vidas tornou-se uma queda de braço. Algumas
pessoas brancas saíram em defesa de suas listas; algumas, inclusive, afirmando
que não existe relação entre não ser racista e não ler obras de autores/as
negro/as.
Para
além da brincadeira, listas como essa deveriam servir como instrumento de
análise com vistas à reflexão e à mudança de pensamentos e ações. Pelo caráter
instantâneo das redes sociais, muitos/as elaboraram suas listas quase no
automático, revelando o que perpassa pelo nosso inconsciente, evidenciando os
discursos da nossa cultura que constroem nossas identidades. Talvez na
tentativa de nos igualarmos ou nos posicionarmos no patamar na
intelectualidade, a maioria – e aqui reforço que não estou falando de todos –
citou majoritariamente autores brancos.
Aprendemos
com a história que nos é contada que os grandes cânones da literatura são
brancos. Até Machado de Assis foi embranquecido pela elite branca do nosso
país. Não importa se Alice Walker recebeu os prêmios National Book Award
e Pulitzer de Ficção ou se Toni Morrison, além desses, recebeu também o
prêmio Nobel de Literatura, a Medalha Presidencial da Liberdade, dentre tantos
outros títulos. Em âmbito nacional, não importa se Carolina Maria de Jesus é considerada
umas das mais importantes escritoras do país, sendo a primeira mulher negra a
ter seus livros publicados em todo o mundo, ou se Conceição Evaristo recebeu o
prêmio Jabuti de Literatura; elas não foram lembradas na maioria das listas
expostas.
Convenhamos,
o universo editorial é branco e machista e as grandes editoras são quem ditam o
deve ser lido, formando, com isso, o nosso inconsciente coletivo que é
essencialmente racista. Para que avancemos, precisamos reconhecer as bases que
estruturam essa manipulação.
Com
estas palavras, não tenho a intenção de negar ou de desconsiderar o valor dos
escritores brancos internacionais; antes, apenas proponho que agreguemos
autores não brancos à nossa lista. Sim, nisso me incluo. Revendo minha lista,
verifiquei que não citei autores potiguares e indígenas. Temos verdadeiras
potências literárias bem aqui, ao nosso lado, mas que não foram lembradas em
nenhuma lista que vi.
O
ato de publicar com frequência, em minha página do Instagram, os títulos de livros que tenho
lido, na realidade consiste em um ato de coragem, uma vez que estou admitindo
publicamente quais obras são relevantes para mim e quais tenho negligenciado.
Todavia, o mais importante é que compreendamos que nossas escolhas não são
naturais, tampouco definem o nosso caráter.
Crescemos
tendo a verdade da elite como única e universal. Então, quando alguém levantar
esse tipo de reflexão, antes de sair defendendo “seu pensamento” (sim, porque
no fundo não é sua opinião, é fruto de uma estrutura colonial) com unhas e
dentes, pare e pense: por que não li/leio
obras de negros/as e indígenas? O que me levou a isto?
Como
muito bem elucidou minha amiga Josely Ferreira em um post, não tem como
você compreender as pautas do feminismo sem ler mulheres, assim como não há
como ser antirracista sem ler obras de negros e indígenas. No post
citado, o debate não se estabeleceu com todos/as, mas será que agora vai?
Apenas permita-se sair da caixinha. Você só tem a ganhar e nós, que sofremos
com o racismo dos brancos, também.
Gratidão
a Ana Cláudia Trigueiro, psicóloga e escritora; Josely Ferreira, sambista e
professora; Bia Crispim, professora e colunista do Jornal Potiguar Notícias; e
Dulce Gomes, professora, pelas conversas frutíferas sobre o assunto. Nossos
diálogos são sempre engrandecedores.
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Bisa Butler |
FILOSOFIA POR TRÁS DAS NARRATIVAS INFANTIS
Minha fala hoje é direcionada às mulheres negras. Espero que estas palavras toquem seus corações e ajudem a acender o sol da humanidade em todas. Para ajudar nessa tarefa, escolhi analisar a mensagem contida na obra Kiriku e o colar da discórdia, de Michel Ocelot. Esse livro faz parte de uma coleção. São narrativas afrocentradas, isto é, escritas por uma pessoa branca, mas que trazem a potência dos valores africanos.
Historicamente, a literatura infantil foi vista como algo de menos valor e relevância, uma vez que, destinada para crianças, não trazia reflexões profundas sobre a vida e o convívio em sociedade. Até hoje, quando alguém se refere à literatura infantil, comumente usa o termo no diminutivo: historinha.
O fato é que as crianças são o nosso futuro e assim, formar o adulto de amanhã é uma tarefa que se inicia na mais tenra idade. Em África, crianças e adultos se reúnem juntos/as/es aos mais velhos para ouvir seus ensinamentos. Todos os membros da aldeia reconhecem nas narrativas a potência dos saberes ancestrais que são apresentados de forma lúdica pelos Dieli ou Akpalôs, os/as contadores/as de histórias.
Rememorando
nossos ancestrais e suas práticas milenares, peço que sentemos juntas para
ouvir essa história.
...
Karaba,
a feiticeira, incumbiu seus súditos de entregar um colar todo feito em ouro na
aldeia de Kiriru, mas advertiu que ele só poderia ser usado pela mulher mais
merecedora do artefato nobre. Estava armada a confusão. Todas as mulheres
passaram dias discutindo e argumentando a razão de cada uma, em especial,
merecer o adorno. Ao longe, Karaba apenas observava satisfeita o sucesso do seu
plano. Com as mulheres ocupadas duelando, a colheita e demais a fazeres da
aldeia ficaram por fazer. Alguns dias depois, o colar desapareceu, provocando
ainda mais discórdia entre todas. Porém, numa manhã, cada mulher foi
surpreendida com um colar, ainda mais bonito que o original, feito com pedaços
do primeiro e mais sementes e penas do lugarejo. Kiriku havia pego e colar e
remodelado de tal forma que todas fossem contempladas. Apenas sua mãe recebeu
um colar feito com sementes e penas. A harmonia voltou a reinar entre
todas/os/es.
...
Percebem? Essa história fala de nós, mulheres negras. A branquitude, aqui representada pela feiticeira Karaba, se utiliza de suas ferramentas para colocar uma irmã contra a outra. É um verdadeiro duelo para ver quem se destaca mais, quem tem mais seguidores, quem sabe mais. E enquanto as irmãs de cor se desentendem, o trabalho na nossa comunidade deixa de ser feito, a militância enfraquece e nosso povo segue morrendo. Algumas de nós, inclusive, adoecem tentando ser aceitas nos espaços da branquitude.
Kiriku, trazendo os saberes dos mais velhos, nos lembra que isso não é nosso. Hierarquizar potências é ocidental, e o ocidente faliu. Precisamos seguir o exemplo da mãe de Kiriku. Apenas ela entendeu que não precisava da aprovação dos brancos/as para ser quem é. Ela é, independente de reconhecimento. Ela tem o mais importante: o elo com a natureza.
Nós, mulheres negras, já nascemos com a coroa na cabeça. Todas nós nascemos para brilhar, e o brilho de uma não significa o apagamento do brilho da outra. A branquitude é ardilosa e se utiliza de artifícios sofisticados para nos separar. “Dividir para conquistar”, lembram?
Como afirma a filosofia Kindezi, todas nós nascemos com um sol interno, e é responsabilidade de toda a comunidade manter esse sol aceso. Esqueça a disputa. Eu sou porque você é. Isso sim é nosso. É bantu!
Seguimos
juntas?
Bisa Butler |
Ana Paula Campos é uma Africana em Diáspora, mãe, pedagoga, especialista em leitura e literatura, escritora, pesquisadora do NEGÊDI/IFRN, feminista negra, Militante no Movimento Negro, membro do Quilombo da Ciência, contadora de histórias pretas, colunista no jornal potiguar notícias e na mídia @racializada do DECOM/UFRN.
Maravilhosa reflexões, muito pertinentes para pautar olhares críticos em uma sociedade excludente como a nossa. (Cecília Peixoto)
ResponderExcluir* Maravilhosas
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