Para não dizer que não falei dos cravos | Um conto de Wuldson Marcelo
Coluna 08 |
Um conto de Wuldson Marcelo
A GAROTA QUE PODIA VOAR
Adele podia voar. Descobriu o poder involuntariamente. Quase involuntariamente. Involuntariamente não é o termo adequado para a situação, pois que ninguém investiga para saber se do dia para a noite terá a possibilidade de ganhar ou perceber um dom especial. Então, pode-se dizer que Adele soube do seu poder quando, em uma manhã gelada de março, sonhou que estava em queda e, para não cair, voou pelo quarto. Ela guardou o segredo de todos. Nem treinava para desenvolver sua habilidade. Mantinha-se afastada de todos, dos curiosos e dos sábios. Alguém poderia vir a desconfiar que podia voar. Nem sua mãe, Laura, nem Maria Isabel, a Pandinha, assim chamada por colecionar qualquer objeto com urso panda, que era sua melhor amiga, tinham conhecimento de que Adele voava. No início, ela voava tão somente pelo quarto, tamanho era seu medo de ser vista e terminar seus dias como atração de espetáculos itinerantes ou material de pesquisa da NASA.
Aos poucos, porém, Adele foi se
acostumando com seu poder. Começou a voar da escola para casa, economizando a
passagem do ônibus e as solas dos sapatos. Ficava feliz em devolver para Laura
a grana que não utilizava com o seu deslocamento para assistir às aulas.
Um dia, salvou uma gata de uma árvore.
Esperou anoitecer para pôr em movimento o resgate. Adorou a experiência de
fazer o bem. E imaginou que pudesse se tornar uma vigilante. Talvez aprender a
lutar e se tornar uma heroína. Treze anos e uma ídolo da cidade. Atentou-se à
vizinhança e seus problemas. Fez incontáveis resgates de gatos, de cachorrinhos
que caíram em bueiros e poços, colheu mangas no pico das mangueiras para que
nenhum fruto se estragasse, acompanhou, de altura considerável, coleguinhas da
escola para que não fossem abordados por estranhos etc...
Mas, certa vez, quando estava atrasada
para encontrar Pandinha no shopping, Adele decidiu voar, cortar os céus,
ultrapassando pássaros e vendo as pessoas como pequenos pontos indistintos
entre árvores e carros. O meio de locomoção que escolheu fez com que estivesse
no lugar certo, na hora certo, pois salvou a vida de um passante no instante em
que seria atingido por um vaso de flores que caiu do parapeito da janela de
dona Conceição. Um voo rasante em alta velocidade para pegar um vaso em queda,
desde o sexto andar, poderia lhe custar caro caso fosse descoberta. Adele
respirou aliviada e saiu em disparada para o shopping.
No outro dia, Adele recebeu uma carta com
uma foto sua, em pleno voo pela cidade. Com a fotografia, veio um bilhete:
“Encontre-me às 16 horas, no parque próximo a sua casa”. A menina passou as
horas antes do encontro se torturando com dúvidas. Contava para a mãe? Escrevia
para o pai revelando tudo, que sabia voar, que poderia ser vítima de chantagem?
Deveria ir ao encontro? Por que foi tão descuidada?
Adele disse à mãe que iria à casa de
Pandinha para fazerem o dever de casa. Laura apenas pediu que não demorasse. No
parque, avistou de longe Margarida, uma vizinha de Conceição, que já se
aproximou e, sem rodeios, expôs que viu a manobra aérea de Adele para salvar um
homem de ser atingido por um vaso de flores. A menina se espantou com o grau de
confiança da mulher. Sentiu medo e o temor de ser tratada como uma aberração e
não uma maravilha veio à tona. Adele engoliu o chorou e prestou atenção em cada
palavra.
- Escuta, menina, eu não quero te
prejudicar. Desejo apenas que você pegue algo que me pertence, mas que é
impossível que eu tenha acesso.
- Não gosto disso; respondeu com firmeza a
menina.
- Olhe, menina... Não quero te prejudicar.
Só me faça esse favor e ficamos quites. Guardo o teu segredo e você me ajuda a
recuperar algo que me faz muita falta.
- O quê?
- Um colar. Era da minha mãe. Está na casa
da minha irmã Regina. Como posso dizer... Ela me roubou.
Adele encarou a mulher de cabelos
levemente grisalhos, que parecia ter sorrido pouco na vida. A menina desconfiou
da história, mas não teve convicção de que tudo fosse uma mentira.
- Tá bom! Pela tua mãe. Depois disso, você
me esquece.
- Combinado!
Apertaram-se às mãos para confirmar o
acordo.
Adele foi até a casa de Regina para
estudar a casa. Alguns dias se passaram, a menina estava ansiosa e angustiada
também. Escondia da mãe um segredo e enganava Pandinha, dizendo estar estudando
química. Adele treinava exaustivamente o tempo de entrada e saída da casa. Mas
se sentia mal por não ter certeza se Margarida era realmente proprietária do
colar.
Adele continuou os treinos, traçou
estratégias, tinha um plano, que consistia em vigiar, ter a oportunidade, voar
para entrar e voar para sair. Tudo pela janelinha do sótão, que sempre ficava
aberta. Porém, no último dia de preparação, quando decidiu treinar em um velho
paiol fora da cidade, foi seguida por Pandinha, que andava preocupada com os
sumiços da amiga. E como ela se surpreendeu com o que viu. Adele pulando do
topo do paiol e antes que chegasse ao chão, parou no ar e decolou até o céu.
Adele avistou a amiga, suspense, uma pausa dramática, só se ouvia a respiração
das duas e um bem-te-vi ao longe. Pandinha se aproximou, a sua expressão
continha mil e uma dúvidas. Adele desceu
à terra, um tanto constrangida, sentindo a maior mentirosa do mundo. Pandinha
parou, sentou-se no chão de terra batida, bateu a mão direita no solo e disse
calmamente:
- Senta aqui! Conta essa parada pra mim
desde o começo.
Entre lágrimas e risos, Adele narrou para
Pandinha a aventura de voar, o medo de ser tratada como aberração e a chantagem
que vinha sofrendo de Margarida.
- Vamos pegar esse colar. Assim, essa
mulher te deixa em paz; declarou Pandinha.
Adele abraçou a amiga, chorou, sentia
menos a sensação de perigo e um afeto crescia tanto dentro dela, que a fez
levitar levando Pandinha com ela para o alto.
As meninas examinaram a casa de Regina,
treinavam com um cronômetro a entrada e saída pelo sótão. Adele ainda imaginava
um plano paralelo para entregar Margarida. Mas sempre desistia no meio do
caminho. Poderia armar uma cilada e sair voando depois, para longe e voltar
quando tudo estivesse calmo. Quem sabe o pai não a recebesse. Havia tempos que
não via seu meio-irmão.
Chegou o grande dia. Adele recebeu um
recado de Margarida, que viesse imediatamente a casa dela, assim que pegasse o
colar. As meninas partiram para a missão indesejada. Adele entrou na casa pela
janela aberta do sótão, Pandinha ficou vigiando. Adele vasculhou os quartos,
desceu para a cozinha, sobrevoou os cômodos e a mobília lentamente, para não
chamar a atenção do cão de guarda e nem do gavião que cuidavam da residência na
ausência de Regina. Antes de voltar para o quarto, Adele examinou os quadros na
parede, fotos de família e viu uma de Margarida e Regina bem jovens, sorriam,
mexeu no quadro e percebeu que havia algo colocado na parte de trás. Qual foi
sua surpresa quando encontrou o colar lá: fino, metálico, com um traço vermelho
de um extremo a outro. Assim que o tocou, Adele se espatifou no chão, deu um
urro de dor, o cachorro latiu e o gavião bateu asas. Ela correu e se escondeu
no sótão. Havia perdido o seu poder, de algum modo o colar o bloqueou.
A casa começou a estalar e produzir um
som, tipo um ronco, os móveis se locomoveram e o teto do sótão balançou como se
fosse desabar. Do lado de fora, Pandinha decidiu agir, pois a casa parecia
dançar e emitir sons super estranhso. Ela se lembrou do cão e do gavião, mas
isso não a impediu de quebrar o cadeado que trancava a porta do porão. Ela
entrou correndo, sentindo que Adele precisava dela. O cachorro a encarou,
deitou e latiu forte, mas a deixou passar. O gavião sobrevoou a sua cabeça,
porém não a atacou. Pandinha falou o mais alto que pode o nome de Adele, que
não respondia. A casa tremia, o chão começou a se abrir e as paredes a rachar.
A menina subiu as escadas e chamou mais uma vez pela amiga. Dessa vez, Adele
respondeu, e Pandinha subiu até o sótão.
- Temos que sair daqui, né, Adele?
- Espera...
Adele olhava pela janela e viu Regina
parada, encarando-as. A agitação da casa aumentou, e, de repente, o voo de
Regina assustou as meninas. Adele ficou impressionada por ver alguém com o
mesmo poder que o seu.
- A casa está viva; gritou Pandinha.
- Ela voou até aqui; diz Adele.
Regina ficou parada, em silêncio, encarava
as meninas sem fúria. Era como se fosse uma observação desinteressada. Pandinha
pegou o colar de Adele, segurou-lhe a mão e quando ia correr, voou.
- Socorro, Adele!
E Pandinha bateu contra a parede e caiu.
- Casa, fique tranquila; Regina ordenou
com carinho.
A casa foi se acalmando.
Regina voou até onde estava Pandinha e
pegou o colar. Ela, assim como Adele, perdeu o seu poder. As meninas perceberam
que a mulher estava todo o tempo andando e não voando.
- O que está acontecendo aqui?; Regina
perguntou às meninas.
Adele, envergonhada e cabisbaixa, contou
toda a verdade, em detalhes e se desculpando em todos os momentos.
-Oras, menina, pare com esse negócio de
pedir desculpas. Se você deve desculpas a alguém é a tua mãe, e também a essa
menininha corajosa deitada no chão.
- Você voa!; diz entusiasmada Adele.
- Vou te contar uma coisa... Eu não voo. O
meu poder é da ilusão. Eu subi aqui pela árvore e pelas tábuas que ajudam a
firmar os pés. Mas para vocês, eu estava voando. Era o que eu quis que
pensassem. O cão e o gavião não existem, mas deixam os invasores afastados. E a
casa não está viva. É tudo um truque. Ilusão.
- Uau!; impressiona-se Pandinha.
- Agora, prestem atenção, a Margarida quer
o colar pelo poder que eu tenho e ela, infelizmente, não recebeu. A minha
bisavó controlava o tempo, fazia chover, acabava com tempestade, fazia o sol
aparecer. A minha avó podia multiplicar as coisas, tipo se só tinha um pão, ela
tocava e um segundo aparecia de lado. A irmã dela, ficava embaixo da água o
tempo que quisesse. Dizem que chegou a morar dentro do mar. E a minha mãe
apagava memórias. Ela não gostava de usar o poder dela. Já Margarida não teve
sorte.
Regina chamou as meninas para perto dela,
e pediu que cada uma segurasse uma extremidade do colar. Assim, Adele recuperou
o seu dom.
- Eu posso voar de novo. Como?
- O colar enfraquece os poderes e ao mesmo
tempo os canaliza e pode transferi-lo para outra pessoa. Quem tem uma forte
ligação com a pessoa que possui o poder, recebe-o assim que toca o colar. Para
desfazer, basta que toquem as extremidades do colar. É por isso que Margarida
quer o colar, já que tem um vínculo emocional forte comigo.
- E como é tudo isso? Como temos esses
poderes? E o colar, quem fez?; pergunta Adele, ansiosa pela resposta.
- São muitas perguntas, criança. Talvez
fadas... Ou orixás. Quem sabe? Há lendas vindas de todas as partes do mundo. O
que eu sei, é que só as mulheres têm poderes. E ele tem que ser usado como você
vem fazendo, ajudando teus amigos e a comunidade.
Pandinha e Adele se abraçam.
- Agora vão. Meu poder já voltou, pois faz
uma hora que toquei o colar e ninguém o tocou depois para absorvê-lo.
Cuidem-se. E eu cuidarei de vocês também.
Adele procurou Margarida e contou a conversa
que teve com Regina. Margarida ouviu em silêncio, não tentou acusar a irmã de
mentir. Apenas revelou que desejava ser como todas as heroínas que conheceu.
Adele e ela acabaram por discutir, pois a menina defendeu que cada um nasce
para o que é, e que se tem várias maneiras de ajudar, desde que se queira
realmente ajudar. Pandinha chegou e as fez perceber o quanto era estúpido todo
aquele conflito.
- Que isso? Temos que estar unidas.
Margarida ficou em silêncio, refletia
sobre os anos de obsessão e rancor que a afastaram de Regina. Sempre acreditou
que fora marcada pelo destino ou pelas deusas com o selo da inutilidade, para
ser uma serva sem qualquer qualidade especial.
- Todas somos alguém, moça; disse
Pandinha, emocionada.
- Eu entendi o poder do colar; revelou
Adele. – O colar significa confiar na outra a ponto de ser capaz de entregar o
poder nas mãos dela. Eu não temi que a Pandinha ficasse com o meu poder. Dona
Margarida, você nunca deu motivo para que a tua irmã acreditasse que pudesse
recebê-lo...
Margarida chorou e foi consolada por
Pandinha. Margarida, com sinceridade no olhar e coração esvaziado da ambição e
da cisma, disse que desistiu de ter o colar e se desculparia com a irmã,
iniciando uma nova fase entre elas.
No dia seguinte, Adele contou a sua
incrível história para a mãe, que revelou que a avô dela abria portas com a
força do pensamento. A garota riu, feliz por saber que mais mulheres possuíam
poderes como o seu.
Adele e Pandinha, que se enrolou na
cintura da amiga, sobrevoaram a cidade. Ainda desengonçadamente, pois Adele
recém havia inaugurado o hábito de dar carona em seus voos.
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